Documentário

Alain Ducasse: o chef de 90 milhões de euros

Embora não o problematize, documentário sobre a espetacular trajetória de Alain Ducasse revela como o homem certo na hora certa conquistou o mundo

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 15/06/2018 às 5:40
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Embora não o problematize, documentário sobre a espetacular trajetória de Alain Ducasse revela como o homem certo na hora certa conquistou o mundo - FOTO: Divulgação
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Aos 33 anos, ele conquistou o que seria inatingível para a maioria dos mortais em sua gravitação: três estrelas Michelin pela atuação num restaurante em funcionamento há menos de três anos. Hoje, aos 62, Alain Ducasse coleciona 23 restaurantes distribuídos em sete países, , uma escola em Paris, dois hotéis capazes de paradigmatizar o que o Ocidente entende por luxo absoluto e um faturamento anual de cerca de 93 milhões de euros – um valor superior à receita anual das capitais de alguns países por ele visitados em busca dos melhores ingredientes do mundo. Não é pouco para quem tinha manteiga e ervas para ganhar a vida diante do fogão: é com reverência a um herói estruturador da cultura de seu país que o diretor Gilles Maistre constrói o documentário A Busca do Chef Ducasse (La quête d’Alain Ducasse), destaque do Festival Varilux de Cinema Francês.

Como numa cinebiografia mais que autorizada, Ducasse se deixa acompanhar pelas câmeras no seu périplo constante pelas cozinhas por ele comandadas ou em busca do melhor que o planeta pode oferecer para suas panelas. Um filme de intimidade - consentida e relativamente bem-calculada. Para entender Ducasse como um personagem apenas possível no contraditório século 20, é preciso uma certa digressão histórico-sociológica. Depois da reorganização do mundo com o fim da Segunda Guerra, o Ocidente começa a ver se esgotar as promessas do capitalismo classicamente fordista, aquele baseado nos bens duráveis que preconizava: a geladeira da sua avó deve durar as três gerações seguintes.

Hoje, quando eletro-eletrônicos ficam obsoletos antes que a sopa esfrie, vivemos o ápice de uma nova economia catalisada, décadas atrás, por Ducasse e seus pares: o capitalismo global passou a vender também o intangível. Além do acumulável, experiências. Assim, justifica-se a emergência de uma indústria global da gastronomia. “Nosso negócio é composto de grandes detalhes para que vendamos, no fundo, lembranças que acompanharão nossos clientes”, confirma o chef, numa das cenas.

Mas o diretor Gilles Maistre não problematiza seu personagem. Não arrisca explicar como alguém saiu da frente de um fogão para dominar o mundo. O filme é uma espécie de longa-entrevista-olho-no-olho apresentada como um roadie-movie – ou melhor, flying movie, em que os planos se alternam entre Ducasse se espreguiçando nas primeiras-classes da vida (dele) e as visitas a seus restaurantes planetários e fornecedores como os criadores de esturjões numa fazenda marinha do Japão para lhe entregar o melhor caviar possível no século 21.

Numa das cenas, Ducasse negocia o cacau de uma fazenda na Bahia com o qual irá produzir o chocolate para clientes dispostos a pagar até US$ 400 por um jantar. O diretor não esconde o hipnotismo por seu personagem: o filme abre e fecha com Ducasse comandando uma brigada de dezenas de cozinheiros e garçons numa coreografia tão complexa como um balé do Bolshoi para celebridades autênticas, autoridades planetárias e simples milionários em seu restaurante no mítico Palácio de Versailles. “O senhor é o ministro francês da culinária?”, lhe interpela um repórter. “Aqui, há líderes de mais de 150 países, alguns em conflito, mas, nesta noite, todos em paz pelos prazeres da mesa. É a gastro-diplomacia mais bela que existe”, ele responde.

O filme vai dando, através da voz admirada do próprio diretor, pistas para se entender o fenômeno Ducasse: a maneira como livrou a cozinha de seus excessos históricos. “Cozinhar com menos gorduras, menos açúcar, mais legumes, cereais e menos carne, o planeta agradece”, ele diz, além de informar, prosaicamente, ao provar uma sobremesa, que, sim, não cozinha para a maioria: “Isso é mole, doce e gorduroso, a maioria das pessoas está aqui porque gosta disso, mas não estamos aqui para agradar a maioria. Queremos criar asperezas”.

ONIPRESENTE

O responsável pela reinvenção do paladar global com sua harmonia prodigiosa entre o tangível (do ingrediente) e o intangível (dos sentidos acionados) aparece também como o primeiro do gênero: aquele que fez da ubiquidade, da capacidade de estar e não estar ao mesmo tempo em todo o mundo, um modelo de negócios global antes impensável para alguém diante de um punhado de echalotas.

Mas não há caroços no angu: apresentado numa trajetória plácida, a ausência de quaisquer contradições faz de Ducasse um personagem semelhante a um grande prato em que a técnica, em vez de aguçar elegantemente os contrastes, os uniformiza.

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