CINEMA

Mulheres fazem uma noite histórica no Festival de Brasília 2018

Os longas Torre das Donzelas e Los Silêncios já marcaram a 51ª edição do festival

Ernesto Barros
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Ernesto Barros
Publicado em 17/09/2018 às 18:06
.Júnior Aragão/Divulgação
Os longas Torre das Donzelas e Los Silêncios já marcaram a 51ª edição do festival - FOTO: .Júnior Aragão/Divulgação
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Em todas todas as suas edições, o Festival de Brasília de Cinema Brasileiro teve momentos inesquecíveis. A primeira noite de exibição das Mostras Competitivas de Curtas e de Longas-Metragens de sua 51ª edição, no último sábado (15/9), certamente já entrou para a história. Com o Cine Brasília lotado, os longas-metragens Torre das Donzelas, de Susanna Lira, e Los Silêncios, de Beatriz Segnier, tocaram profundamente na situação do Brasil atual, especialmente a atuação das mulheres na política e a questão das populações pobres da América Latina, que estão pedindo refúgio no País.

Ao final de sua sessão, Torre das Donzelas foi aplaudido longamente por mais de 10 minutos, durante toda a longa sequência dos créditos finais, que traz foto e uma biografia sumária de cerca de 40 mulheres que lutaram contra a ditadura e ficaram por vários anos presas no antigo Presídio Tiradentes, em São Paulo (hoje demolido). No período em que serviu de prisão das detentas políticas, o presídio ficou conhecido por Torre das Donzelas, por ter apenas mulheres entre sua população.

A presa mais famosa foi a ex-presidente Dilma Rousseff, que ficou encarcerada dos 18 aos 21 anos. Grande parte desse tempo ela viveu na Torra das Donzelas. A documentarista carioca Susanna Lira, com vasta experiência no campo dos direitos humanos, não poderia ter sido mais feliz na maneira como reconstruiu o espaço do presídio. Ela trouxe as ex-presas para uma escuta de testemunho da experiência delas em comum. Atualmente, o que restou fisicamente do presídio Tiradentes é apenas um arco, o resto foi posto abaixo em 1972, quase como um tentativa do Estado de apagar as memórias de toda a história da instituição, criada em 1825 como cadeia pública.

Durante o concorrido debate na manhã de ontem, Susanna Lira e várias ex-detentas estavam presentes, entre elas a bioquímica Ana Miranda, fundadora do Coletivo Memória, Verdade de Justiça, e a recifense Rita Sipahi, atualmente conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. “Até hoje não sabemos quantas mulheres foram presas e passaram pelo presídio. Só o Exército poderia ter esses dados”, revelou Rita. Além delas duas, pelo menos oito entrevistadas estavam presentes à sessão do filme. Em alguns momentos, deu para ouvir mulheres chorando durante a projeção.

Embora seja natural que se esperasse depoimentos das torturas e das violências sofridas na prisão, a estratégia elaborada por Susanna Lira para mostrar como as presas políticas superaram as dificuldades diárias é das mais engenhosas. Na abertura, ela pediu que elas desenhassem o que lembravam da edificação, com cada uma delas forçando a memória para reconstituir o espaço. A partir de uma direção de arte inspirada, Torre das Donzelas ganha vida novamente, com as mulheres relembrados detalhes do dia a dia e o que faziam para manterem o astral em alta.

Susanna juntou pelos menos 18 ex-presas para reviver a experiência, mas algumas participam apenas por meio de entrevistas isoladas. É o caso da ex-presidente Dilma Rousseff, que tem boas falas e tiradas de humor surpreendentes. “Eu li Marx, Althusser e todos os autores proibidos. Fiz minha educação política na prisão”, revela. Embora a cadeia tivesse revistas constantes, as então detentas conseguiam esconder livros e revistas dos agentes carcerários do Exercito. Durante as articuladas entrevistas da ex-presidente, o plateia não se conteve e ouviu-se gritos de Lula Livre pelo cinema.

“Não queria mostrar apenas a visão penitente da prisão”, apontou Susanna durante o debate. Em dois momentos, elas relembram momentos marcantes, entre eles a chegada de três malas com roupas. Ao contrário de reclamarem, elas fizeram um desfile na prisão. “É importante que as presas tivessem essa necessidade de ser feliz ali dentro, com o que elas tinham. A gente precisa de mais alegria para enfrentar essa luta. Ser alegre e positivo é um ato político.”

Para contrabalançar a reconstituição só com a presença das mulheres em sua fase atual, a documentarista insere imagens fugidias com a presença de atrizes jovens, mas que nunca ficam em primeiro plano. A reconstituição também se estende ao especto sonoro do filme, muito bem trabalhado em sons específicos de uma cadeia, com batidas de portas, o arrastar de correntes e o burburinho de vozes , que, segundo Susanna, foram gravados numa prisão feminina do Recife. As músicas também estão muito presentes, como a canção de Dorival Caimmy Suíte do Pescador, que elas cantavam nas despedidas, quando algumas mudavam de presídio.

Los Silêncios, o segundo longa-metragem da noite, foi outra jornada de forte de forte emoção sobre uma mulher e dois filhos que fogem da violência dos conflitos armados na Colômbia. O marido foi dado como desaparecido depois de um deslizamento de terra quando trabalhava para uma mineradora. Eles chegam durante uma madrugada numa pequena ilha entre as fronteiras do Brasil, Colômbia e Peru em busca de abrigo e proteção.

De acordo com a Beatriz Segnier, a história do filme foi construída a partir de relatos que ela ouviu de imigrantes colombianos que fugiram para o Brasil. As filmagens foram realizadas em lugares reais, com atores não-profissionais – a única exceção é o brasileiro, de nascimento peruano, Enrique Diaz – das cidades de Leticia e da Ilha da Fantasia. A ilha, que aparentemente não pertence a nenhum dos três países, tem até um presidente. O filme acompanha a luta da mulher para cuidar dos filhos, enquanto tenta receber uma indenização da empresa.

Inspirado pelo cosmogonia das populações indígenas da região, o filme tem uma forte carga de espiritualidade, principalmente na relação com os mortos. Quase todos os moradores da ilha, de uma maneira ou de outra, carregam a presença dos seus familiares desaparecidos. Por duas vezes, o filme apresenta as assembleias dos moradores da ilha, uma de vivos e outra de mortos. “Quando cheguei para filmar, percebi que os moradores tinham medo dos fantasmas da ilha”, disse Beatriz durante o debate. “Tive que reescrever o roteiro para poder ser fiel aos que eles sentiam”.

CURTAS-METRAGENS

Os curtas-metragens que acompanharam os longas nas duas sessões também trouxeram questões em comum. O curta paulista Kairo, de Fábio Rodrigues, que acompanhou Los Silêncios, fala de um desaparecimento, tratado igualmente com muito sensibilidade.

O filme se passa na periferia de São Paulo e acompanha a chegada da assistente social Sônia (Vanessa Oliveira) a uma escola pública. Ela chega para pegar o menino Kairo (Pedro Guilherme ), de nove anos, para ter uma conversa com ele.

No passeio, fazem um lanche e andam no Parque do Ibirapuera. Com uma direção bastante sensível, Fábio Rodrigues se amarma de grande sutileza para mostrar como a violência acaba atingido a todos, sem exceção.

Já o cearense Boca de Loba, de Bárbara Cabeça, se acerca do cinema de gênero para tecer uma série de situações sobre o feminino. A partir de um grupo de mulheres que entram em bocas de lobo e vivem em comunidade, o filme parece visão ancestral de um coletivo que evoca um espírito selvagem, protetor das mulheres.

Mas o filme vai além da tentativa de criar um narrativa simples, com a criação de imagens criativas e marcantes, como uma supermulher que come o sol. Os efeitos especiais e a fotografia estilizada, quase sempre noturna, dão ao filme um tom de fábula.

O repórter viajou a convite da organização do festival.

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