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Gay Talese e o imaginário da máfia

Pai do chamado novo jornalismo, escritor americano revela mecanismos de atração e repulsa do crime organizado

Schneider Carpeggiani
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Schneider Carpeggiani
Publicado em 29/03/2011 às 19:12
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A máfia é uma instituição tatuada em nosso imaginário. Mas é sempre na sua versão romântica, com pouco sangue e confrarias familiares que nunca podem ser quebradas. A palavra máfia nos faz lembrar do clã imaginado por Mario Puzzo e dos três tapinhas nas costas dos seus personagens, das festas ao som de Frank Sinatra e Tony Bennett, de Marlon Brando, Al Pacino, Família Soprano e daquele afeto típico dos italianos que os americanos sabem exagerar com precisão. É um pouco essa versão que encontramos em Honra teu pai (Companhia das Letras), do jornalista norte-americano Gay Talese. Um pouco.

O famigerado pai e sinônimo da expressão “novo jornalismo” (veja texto abaixo) começa nos oferecendo certo glamour da velha máfia – até como uma isca para adentrarmos na história mais rápido –, para depois espatifá-lo, nessa reportagem que levou sete anos para ser finalizada. No processo, Talese dispôs de acesso irrestrito ao clã Bonanno, um dos grupos que controlava Nova York até meados do século passado, revelando pela primeira vez a estrutura e os mecanismos internos do crime organizado. Nas cenas em que retoma aquela máfia romântica, faz Puzzo morrer de inveja.

A força de Honra teu pai reside na sua capacidade de explicar o paradoxo que persegue/assombra a máfia.

É o caso da sua descrição da chegada de um mafioso e sua esposa para passar a lua de mel na Sicília e assim conhecer suas verdadeiras raízes familiares: “Caminhando pela pista, sob o sol escaldante da Sicília, vendo a distância morros cujas vertentes abrigavam aldeias de casas de pedra escura, Bonanno sentiu que a multidão o fitava, agitando-se e murmurando enquanto ele se aproximava. As velhas estavam vestidas de negro, os moços tinham expressões graves e por todo lado havia crianças que brincavam; mais altos que as outras pessoas, destacavam-se, como estátuas, os carabinieri, vestidos de maneira bizarra e brandindo reluzentes espadas prateadas”. 

É impossível sabermos até que ponto essa cena se aproxima do real (princípio básico do jornalismo). Mas não lemos alguém como Talese pela veracidade dos fatos, e sim pelo estilo. Por sua forma única de nos seduzir. Talese não é um “informante”; é uma grife.

Olhando dessa forma, faz todo sentido que uma reportagem sobre a máfia comece medindo a capacidade visual dos porteiros de Nova Iorque. Como uma pessoa pode ver demais – e por isso o que não deve –, tais profissionais adquiriram, segundo Talese, uma extraordinária capacidade de visão seletiva. Sabem o que ver e o que ignorar, quando é conveniente ser bisbilhoteiro ou, ao contrário, displicente. Se ocorrem acidentes, crimes, discussões ou qualquer outro tipo de tragédia bem na frente de seus edifícios, a maior parte das vezes estão lá dentro e nada veem. E quando ladrões fogem pelo saguão, quase sempre estão procurando um táxi para alguém.

“Um porteiro pode desaprovar suborno ou adultério, mas, ainda assim, está invariavelmente de costas quando o síndico passa propina ao fiscal do Corpo de Bombeiros, ou quando um morador cuja mulher está fora entra com uma moça no elevador. Não pretendo com isso acusar os porteiros de hipocrisia ou covardia, mas tão somente dar a entender que eles sabem perfeitamente, por instinto, que é bem melhor não se meter, e conjecturar que talvez eles tenham aprendido, pela experiência, que a pessoa não ganha nada por ser testemunha ocular das coisas feias da vida ou das loucuras da cidade”. Todo esse preâmbulo serve para justificar o sequestro que dá o start para as centenas de páginas seguintes.

Mas é claro que a força de Honra teu pai não reside apenas na pirotecnia da escrita de Talese, e sim na sua capacidade de nos explicar o paradoxo que persegue/assombra a máfia: uma instituição encurralada entre uma realidade sangrenta e o carisma inegável que sua aura exala.

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