ENTREVISTA

Fernando Monteiro: poesia contra o "Moloch de Mercado"

Em entrevista ao Jornal do Commercio, o escritor e cinesta fala sobre as provocações do seu livro à cultura e à sociedade contemporânea

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 20/05/2012 às 6:03
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Na entrevista abaixo, feita por e-mail, o escritor e cineasta Fernando Monteiro comenta o seu novo livro, Mattinata.

JORNAL DO COMMERCIO - Mattinata, título também da obra, é o nome da primeiro poema dos três que compõem o livro. O tema é relativamente simples: a iminente separação, o contemplar dela a partir da natureza. É uma situação levemente biográfica ou essa voz poética tão sincera foi puramente criada?
FERNANDO MONTEIRO -
Foi criada, sim, com aqueles elementos que a vida vai fornecendo à consciência, ao longo do tempo -- provavelmente o objeto final de meditação desse poema de 25 estâncias que abre o Mattinata com a falsa alegria da manhã para os personagens dele. Falo em "personagens" pelo fato do poema (como o anterior, Vi uma foto de Anna Akhmátova, poema longo de 2009) ser narrativo, havendo um drama embutido nos versos de maneira que quase impede, por exemplo, que possam ser lidos ao acaso. O desenvolvimento desse poema implica na leitura em ordem progressiva das partes, por ser esse o modo correto de leitura de uma peça narrativa como é o Mattinata e também o poema que fecha o livro, igualmente longo, escrito a partir de um verso do falecido poeta paulista Roberto Piva. Desde a minha estréia na poesia, em 1973, a opção tem sido por poemas narrativos (e, necessariamente, longos) no quais algo está se passando, alguma coisa ocorre no "núcleo duro" do rio subterrâneo da poesia. Aqui, é a manhã, a noite da separação, o tempo que virá com o seu vazio por sobre as lembranças, névoa embaçando o vidro da realidade.

JC - Há no poema uma leve inversão do que é comumente aceito. Se a noite é triste, porque é quando a separação se anuncia, a manhã é ainda mais, porque é quando ela acontece. O dia pode ser mais frio, mais cruel que a noite? É a antecipação que prolonga a dor?
MONTEIRO -
Isso mesmo. Essa inversão - e outras - pontuam o poema que justamente não "confia" na Realidade (o que ela é, no final de contas?, perguntam os versos de Mattinata, secretamente). De que matéria somos feitos, entre o mar de tempo e a praia de espaço que nos engana desde todos os pontos de vista da solidão metafísica que permeia a vida? Essa pergunta solene, é, basicamente, aquela a que o primeiro poema do livro tenta dar uma resposta - que nunca será "resposta", plenamente falando -, nesse mistério no qual estamos todos imersos, afogados e, um dia, mortos como as ruínas.

JC - É possível fazer poemas a partir da poluição de um clichê com algum jogo de palavras, como você diz?
MONTEIRO -
É possível fazer poemas a partir de tudo, desde que a alma não seja pequena ou menor do que poema. E, talvez, não se trate propriamente de "jogar" com palavras, mas de esticá-las para ver o que está dentro delas, o frio que elas portam, a noite e a manhã que ainda as fazem tremer quando mais uma vez as usamos, como insuficiente meio de decifração das coisas. A poesia faz isso - essa investigação de periscópio na bruma - com mais poder de foco do que todas as demais linguagens.

JC - Na segunda parte, nos deparamos com a bárbarie que a aparência de progresso esconde. Estamos num mundo cada vez mais tolo?
MONTEIRO -
Estamos, infelizmente. Quem quer que se debruce sobre o mundo antigo (e eu me debruço; talvez até leia mais sobre história do que sobre literatura), verá que tal mundo foi superior ao nosso, atual, fragmentado em todos os sentidos. Os antigos tinham uma visão coesa do Universo, até porque viveram no que Mircea Eliade chama de tempo "mágico-religioso". Cosmogonias, teogonias, sinteses filosóficas presidiam o mundo pré-cristão sem os prejuízos, digamos, do que viria a ser a cultura ocidental (falo no contexto dela, ao qual pertencemos) após São Paulo e também a decisão política - do imperador Constantino - de adotar o cristinianismo como a religião do Estado romano. O belo mundo pagão se extinguia, neste momento, para dar lugar a um outro até o estágio a que chegamos agora: tecnologia dirigida somente para se aperfeiçoar a si mesma, praticamente sem finalidade (é claro, no vazio moral e espiritual em que nos encontramos, civilizacionalmente falando).

JC - É a poesia que pode nos fazer entender por que o nosso mundo tão pornográfico é mais conservador sexualmente que alguns dos antigos?
MONTEIRO -
A poesia seria um dos meios desse entendimento de algo realmente espantoso: tornamo-nos conservadores, como vc diz, no meio da permissividade. Um "belo" tempo, este nosso, de hipocrisia grossa grassando por toda parte. Olho para trás, e até a Roma "devassa" dos clichês parece-me mais sã (e moderna) do que nós, "que nos amamos tanto"...

JC - Sei que o poema que você escreveu é justamente sobre isso, mas queria que você explicasse um pouco porque te fascinou tanto a pergunta cortante de Piva: "E para que ser poeta em tempos de penúria?"
MONTEIRO -
Quando Roberto Piva encerrou a sua vida de independência, desafio e orgulho (homossexual) como um digno Pasolini brasileiro, as notícias - curtas - sobre a sua morte de quase indigente etc, citaram esse verso, como uma espécie de gancho: "o poeta Piva lascou-se, morreu, ele que já estava lascado segundo um dos seus versos mais recentes" etc, e lá vinha o tal verso (que Piva tomou emprestado de Holdërlin). Aquilo foi me irritando, em cada jornal que aparecia, porque é evidente que o poeta paulista se referia a uma penúria geral e de nós todos, que perdemos contato com a beleza, a verdade e a justiça (para lembrar os versos de Keats). Entretanto, era bem mais "cômodo" remeter a "penúria" para o bolso do poeta "lascado", do que ter que encarar a pergunta direta que nos deixou o rebelde: "E para que ser poeta em tempos de penúria?"... Então, eu escrevi todo poema a partir dessa indagação incontornável, em parte para não permitir que prossigam tentando livrar a cara dessa inquirição muito além de "autobiográfica", digamos. Ela põe o "dedo na ferida", digamos assim.

JC - Para você, a poesia é desprezada pelo mundo de hoje?
MONTEIRO -
A poesia não encontra lugar, nem poderia encontrar, num mundo reduzido a comprar, a adquiri, a ter e a possuir (tão provisoriamente!); um mundo sem medo da vida e da morte -- ou melhor, que prefere não pensar nelas. O mundo do Moloch do Mercado, como eu chamo. Um mundo no qual até "a cultura se tornou um ativo do mercado financeiro, abrindo mão de sua força crítica para se tornar uma celebração do realismo capitalista", conforme recentemente bem resumiu o Vladimir Safatle. 

JC - Diante da penúria, qual pode ser a resposta de um poeta? Escrever e publicar, contra todas as possibilidades?
MONTEIRO -
Não está restando muitas chances, mais, para um poeta responder seja ao que for, nessa cultura mundial pós-pop regulada pelo todo poderoso Moloch. "Poesia não vende", anunciam os grandes editores preguiçosos do Brasil ("livro de contos também não", acrescentam, com a mesma colossal preguiça burra), e fim.

Leia mais sobre o assunto no Jornal do Commercio deste domingo (20/5).

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