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A dimensão crítica e social de Anna Karenina

O romance de Tolstoi trabalhou a temática do adultério e do desejo feminino em sua abrangência coletiva

Beatriz Braga e Diogo Guedes
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Beatriz Braga e Diogo Guedes
Publicado em 21/04/2013 às 5:50
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O romance de Tolstoi trabalhou a temática do adultério e do desejo feminino em sua abrangência coletiva - FOTO: Divulgação
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Leon Tolstoi (1828-1910), como afirma no fantástico começo de Anna Karenina, estava mais interessado na singularidade da infelicidade – cada família e pessoa triste é triste à sua maneira – do que nas convenções da alegria constante. É por isso que, em uma época em que as aparências da burguesia europeia começavam a ser desnudadas para além ds críticas idealizadas dos românticos, o escritor russo penetrava em seus personagens para mostrar a falência da moral e das convenções da aristocracia russa.

Hoje um clássico, Anna Karenina foi publicado primeiro como folhetim, a partir de 1873 – só quatro anos depois viraria uma obra completa. Segundo o professor de Letras da UFPE, Lourival Holanda, foi um romance de grande popularidade: para se ter uma ideia, as mulheres “mandavam as criadas até à redação do jornal para driblar e saber o andamento, a continuidade da história”.

Admirador de Tolstoi, o escritor pernambucano Raimundo Carrero defende que o livro ocupa espaço junto a Guerra e paz entre as obras de autor russo que mostram a “desesperadora paixão humana”. “Em Anna Karenina são apresentadas e discutidas as transgressões do ser humano no amplo painel da sociedade russa. Pelo menos duas cenas são antológicas: o primeiro encontro de Anna e Vronski num trem e o suicídio de Ana, jogando-se na frente de outro trem, quando ela sente um incrível alívio”, lembra.

A obra se insere na tradição romântica e realista – de Balzac a Flaubert – de apontar os conflitos das mulheres diante da sociedade burguesa europeia do século 19. “A mulher vem ali como um signo carregado de novas significações: a beleza assumida (diferente da modéstia cristã que a anulava); a educação, que a faz ‘moderna’ porque já vai na direção de ser crítica e autônoma”, afirma o acadêmico.

Para ele, a abordagem crua do romance foi um choque. “O escândalo do romance está em querer escapar ao papel determinado (pela sociedade ou pela natureza); nisso contém certo realismo; mas um realismo crítico, não descritivista”, aponta.

É esse dado crítico e social que o romancista Rubens Figueiredo, que traduziu do russo o livro para a Cosac Naify, destaca. Para ele, a literatura russa do século 19 é especialmente interessante porque suas obras se conectam com a realidade social que as produz – um compromisso que parece cada vez mais raro nas obras atuais.

“Se Anna provém de um determinado tipo de família, de uma condição social mais frágil, e se casa com um homem de uma esfera social mais alta, mais ligada ao poder, isso pesa no que ela diz, no que ela pensa e sente. Até no que ela sonha”, explica Figueiredo. “Essa é a arte de Tolstoi: tudo, sobretudo as coisas mais banais, se desdobram e ganham uma dimensão maior a cada novo acontecimento”.

TRAIÇÃO
Anna Karenina traz para o centro da sua trama uma questão fundamental dos romances realistas: o adultério. Madame Bovary, do francês Gustave Flaubert, publicado em 1856, foi atacado por puritanos e levado para tribunais. Anos depois, seria a vez de Tolstoi adentrar a temática.

No Brasil, no nosso dito realismo, Machado de Assis também se voltaria para a infidelidade no casamento, mas de forma bastante diversa. Dom Casmurro, de 1899, imortalizou não só a personalidade indecifrável de Capitu, mas também uma dúvida: houve ou não houve traição?

“A diferença entre Capitu e Anna é abissal: uma pensa e calcula, a outra é só paixão. As personagens de Machado não conhecem o amor: sinal dos tempos novos onde o interesse precede o desmantelamento interior, próprio do amor”, descreve Holanda.

O também professor de Letras da UFPE, Anco Márcio Tenório Vieira, diz que Machado vai além dos romances realistas anteriores: “Quem inicia a leitura de Dom Casmurro buscando encontrar um discurso persuasivo contra o adultério e a favor da família patriarcal, cristã e burguesa, como vamos encontrar nos romances de Eça, Flaubert e Tolstoi, encontra uma linguagem polissêmica que puxa o tapete de todas as suas certezas”. Depois da desconstrução do casamento de Flaubert e Tolstoi, a única certeza que Machado oferece é a da dúvida.

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