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Talvez o principal escritor a aportar na Fliporto, o português Valter Hugo Mãe veio da fria Islândia diretamente para o calor de Pernambuco. Na conversa abaixo, ele fala sobre a cultura islandesa e também os passeios que fez pelo Estado, em busca de artesanato.
JC – Como nasceu seu mais recente romance, A desumanização, lançado agora em Portugal?
VALTER HUGO MÃE – A desumanização é a minha tentativa mais fervorosa de fugir de mim mesmo, no sentido em que é o meu primeiro romance que se passa fora de Portugal, sem utilizar as referências da cultura portuguesa. Então, é um modo de me deslocar em absoluto e tentar não ser eu, ser outro. O romance tem sempre essa utopia: o autor escreve e inventa personagens de alguma forma para entender o lugar dos outros, entender a cabeça dos outros. Eu andava há muito tempo com essa vontade de fazer essa deslocação mental. Eu escolhi a Islândia, que é um país muito distinto do meu, com uns costumes, uma mentalidade e uma construção social muito distinta também do meu país. E escolhi porque me inspirava aquele espaço.
Aquela ilha, ela inspira uma atualidade muito sui generis. Tudo parece feito de uma dimensão de pureza absoluta, mas também, ao mesmo tempo, de uma espécie de catástrofe anunciada. De uma espécie de bem e mal que convivem como se estivessem quase a ser amigos, como se o bem pudesse ser amigo do mal, porque a limpeza da Islândia, a limpeza daquela paisagem, a depuração dela, não deixa de conter o perigo extremo da catástrofe vulcânica, do degelo. É meu livro mais filosófico, assim, mais metido, mais “se achando”, como vocês dizem risos, sobretudo para eu me colocar em risco e procurar aprender outra vez, poder aprender outra vez.
JC – E como surgiu o desejo de ir para lá? Já conhecia a Islândia?
VALTER – Eu nunca tinha ido. Fui buscar a Islândia porque sabia que eu ia buscar ali um livro. Eu descobria pequenas coisas sobre aquele país, escutava muita música islandesa. Quando escrevi O filho de mil homens, eu já sabia que acabava o livro e viajava logo depois para a Islândia. Eu tinha aquilo decidido. Fui à Islândia propositadamente para saber dar consistência a essa vontade de escrever sobre aquele país.
JC – E como é se tornar um personagem de filme com o diretor Miguel Gonçalves Mendes?
VALTER – É muito estranho. Eu preciso muito esquecer que ele está lá. Normalmente eu penso que a relação que eu tenho que ter com Miguel é nenhuma (risos). Miguel tem que ser nada. Se eu estou a pensar no Miguel com a câmera, a minha vida fica arruinada, porque vou estar sempre preocupado se estou bem, se ele está bem, se ele precisa de alguma coisa, e daí não vou fazer nada natural. Eu vou só estar assistindo uma visita, vou ter uma visita um pouco parasitária, uma visita que veio e nunca mais quis ir embora. Tenho que fazer de conta que ele não veio sequer, que não chegou. Isso é divertido e chega um ponto em que é possível. Então, eu estou cada vez mais cruel com ele (risos) e cada vez menos interessado no trabalho dele.
JC – Você filmou com Miguel pelo Recife. Por onde mais passou e o que mais viu?
VALTER – Queria muito ver os dois Brennands, Francisco e Ricardo, os dois templos, palácios. Reconheço que nunca havia vindo para esta região, mas aquilo que eu percebia muito daqui era o artesanato, então, andei muito à procura de comprar uma boa peça de cerâmica. Comprei um bumba-meu-boi lindo, uma obra de arte absurdamente exímia, um São Francisco de Assis feito de madeira e uma ocarina, que é um objeto extremamente musical que eu adoro, de barro linda, feita com um som absolutamente onírico. Miguel esteve sempre comigo, me acompanhou a comprar caju, a ir ao mercado comer coxinha de frango e a tomar muita água de coco. Eu acho a coxinha de frango o prato superior da gastronomia brasileira (risos). É uma coisa que toda a gente parece saber fazer, toda gente vende, muita gente despreza mas é bom, bom, absurdamente bom. Com duas coxinhas de frango o Valter Hugo Mãe tem uma refeição perfeita.