Cultura popular

Com Liêdo, morre parte da memória do povo do Recife

Pesquisador deixa um acervo de quase nove mil objetos ainda sem destino preciso

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 15/05/2014 às 10:30
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    Calou-se o último grande deles. Ontem, às 5h30, quando parou de bater o coração de Liêdo Maranhão, silenciou-se a última voz que dava abrigo e memória à impagável oralidade do povo do Recife. Ao lado de Mário Souto Maior e Roberto Benjamim, o pesquisador Liêdo compôs uma tríade dos que se dedicaram a registrar as idiossincrasias do povo nordestino em sua grande capacidade de reproduzir e renovar expressões na fala das ruas.
Fica sua obra: “Vamos trabalhar para preservar e manter o grande acervo que papai deixou”, disse o filho e curador da coleção e acervo de Liêdo Maranhão, Ronan Ruiz Maranhão.
Antes do Natal do ano passado, Liêdo fraturou um fêmur depois de uma queda em casa. Respondia bem às sessões de fisioterapia, lúcido e falante como sempre, até que sofreu um acidente vascular cerebral no dia 10 de janeiro. Embora estivesse com a fala ainda comprometida, estava de alta. O folclorista se preparava para voltar para casa, ontem pela manhã, no Hospital Santa Terezinha, na Caxangá, quando seu coração parou. Tinha 88 anos.
Dentista de formação (na Espanha, onde viveu parte da juventude), etnógrafo 24 horas, antropólogo que nunca precisou da academia para respaldar seu ofício, e “sacanólogo” assumido, Liêdo publicou, algumas vezes com recursos próprios, onze livros em mais de 45 anos de pesquisa.
Foi também artista plástico, autor de impressionantes esculturas de ferro. Como pintor, participou, ao lado de nomes como João Câmara, dos movimentos de arte nos anos 1970 na Ribeira, em Olinda. No início da carreira, de vacas magras, Câmara chegou a custear tratamentos odontológicos com Liêdo pagando-lhe com quadros.
Várias obras de arte compõem o acervo de Liêdo Maranhão na casa de Bairro Novo, Olinda, em que viveu a maior parte da vida. Com mais de nove mil objetos, o acervo é composto sobretudo de livros, manuais de cultura popular, almanaques, folhetos religiosos, cordéis, cartazes publicitários, fôlderes, revistas antigas, esculturas populares, objetos do dia a dia. Um acervo catalogado pela Universidade Federal de Pernambuco que conta, em si, a memória popular nordestina do século 21.
Liêdo morreu sem conseguir realizar seu maior sonho: transferir o acervo para uma instituição que ele batizaria de Casa da Memória Popular. Chegou a conversar com prefeitos e governadores, desde há mais de uma década, na tentativa de doar a coleção. Nunca teve êxito. “Mas não vamos desmontar a casa. Minha ideia agora é trabalhar para transformar a casa de papai numa fundação, manter o acervo aberto a pesquisas”, diz o filho Ronan.
E não foram poucos os que iam à casa de Liêdo em busca de informações e inspiração sobre peculiaridades do povo nordestino. O cineasta Guel Arraes, por exemplo, visitou Liêdo para melhor talhar a dicção no cinema de alguns de seus personagens. “Esses artistas são todos uns chupa-cabras!”, dizia, humor sempre direto e indomável, Liêdo.
Embaixador do Mercado de São José, onde encontrava grande parte dos personagens descritos e transcritos em seus livros, Liêdo nunca seguiu quaisquer métodos acadêmicos etnográficos. “Quando vejo a conversa é boa, chego perto e escuto tudo, se der, me meto. Depois, volto pra casa repetindo tudo isso na cabeça”, disse, a este escriba, numa de suas últimas entrevistas.
O mercado, para ele, foi um microcosmo privilegiado da personalidade popular recifense. “O Recife sem o Mercado de São José seria como um piano sem teclado”, dizia. “Liêdo Maranhão de Souza e o Mercado de São José constituem uma só pessoa. Ambos nascidos no Recife, Liêdo é quem fala pelo Mercado, assim como um boneco e seu ventríloquo”, define Urariano Mota, no seu livro Dicionário amoroso do Recife.
Interessado em futebol, religião, crendice e “safadeza” – “ou seja, tudo o que o povo gosta”, Liêdo publicou títulos como O Recife cagado e cuspido, a fala do povão e Recife lambe-lambe. Neles, apresentava comerciantes, transeuntes, cartomantes, bêbados, prostitutas e personagens das ruas do Recife. Não os emoldurava com academicismos. Tinha na capacidade de transcrever a oralidade mais direta possível de seus personagens um de seus grandes méritos.
Um de seus últimos livros foi  Cozinha de pobre. “Não é o mesmo que cozinha típica, é cozinha de pobre mesmo, feita com o que se tem. É como café de soldado e pirão de pinto”, disse ele, autor de compilações etnográficas impagáveis, como a que versa sobre “as comidas de dar força ao homem”.
Na coleta de crenças populares sobre alimentos afrodisíacos no Recife, ele colheu pérolas como o depoimento de um comerciante de Afogados sobre a mistura de farinha, água quente, cominho e alho conhecida como mingau de cachorro. Uma receita, segundo seu informante, capaz de fazer o homem matar uma mulher de esgotamento físico ou, se o ramo sexual for outro, fazer o sujeito “subir um poste todinho de costas”.
Com fé e safadeza, elegância, vulgaridade e picardia, Liêdo compôs um grande retrato da paisagem humana das ruas, mercados e lugares onde a subjetividade coletiva dá a dimensão do espaço público. Com sua partida, a voz do povão perde um amplificador. Liêdo Maranhão será cremado, às 11h de hoje, no Memorial Guararapes. Com ele, vai parte da memória popular do Recife.

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