RESENHA

Romance de Débora Ferraz recria a dor do desaparecimento

Enquanto Deus não está olhando venceu o Prêmio Sesc de Literatura neste ano

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 31/08/2014 às 5:01
Bruno Vinelli/Divulgação
Enquanto Deus não está olhando venceu o Prêmio Sesc de Literatura neste ano - FOTO: Bruno Vinelli/Divulgação
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O impacto de um desaparecimento está na sua latência: quando alguém some, subitamente parece estar presente em todo e qualquer canto que existe. No romance Enquanto Deus não está olhando (Record), da pernambucana Débora Ferraz, vemos a protagonista Érica lidar com o sumiço do pai de uma clínica onde se tratava do seu alcoolismo. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura deste ano, o volume permite que o leitor note um dos belos efeitos da literatura: apesar de ausente ao longo das 366 páginas do livro, o pai de Érica é um personagem incrivelmente tátil, onipresente em cada gesto de filha.

O próprio romance tem uma boa definição da angústia constante de Érica, um jovem aspirante a artista plástica que precisa ajudar a cuidar da sua casa depois desse desaparecimento. “Eu estava, agora, condenada a chegar aos lugares que ele havia acabado de deixar”, descreve a personagem em dado momento. Quem a ajuda nessa situação é um amigo da adolescência, Vinicius, que tenta despertar nela a ambição por um projeto pessoal, em uma tentativa de retirá-la desse luto. Os dois ainda têm um relação difícil, carregada de percalços.

O enredo acompanha os momentos prosaicos da perda: conviver com a antiga casa, procurar o pai em locais que se sabe que ele não está, voltar ao trabalho, recomeçar a sair com amigos. “Quando meu pai foi embora, a casa, subitamente, tornou-se obsoleta. Como se a decoração estivesse, agora, completamente fora de moda”, aponta, no início de um dos capítulos. O rumo dos acontecimentos é relativamente comum, e Débora procura construir um romance em que a tensão não se dá através das ações , mas do acúmulo de sensações.

Enquanto Deus não está olhando descreve, sem ser monótono, os instantes fundamentais da vida de Érica. Como artística plástica, a personagem está sempre fascinada pelo mistério escondido na aparência das pessoas e das coisas. O livro poderia se tornar facilmente uma pretensiosa sequência de lamentos, mas a prosa simples do romance parece manter o leitor sempre aguardando a conclusão da epopeia da aceitação da perda – se é que ela chega ao fim em algum momento. Ali, a narrativa sempre passa pelas impressões de Érica, em sua contemplação melancólica do universo que restou a ela. Já na primeira frase da obra, a protagonista admite que “O fim do mundo chegou cedo desta vez”, em um belo e triste começo para o romance.

O livro impressionou o júri do Prêmio Sesc, liderado por Luiz Ruffato, que destacou as “pequenas epifanias transformadas em experiências que vão guiar as personagens vida afora”. Raimundo Carrero, que teve Débora como aluna em uma de suas oficinas, também elogiou o universo “sombrio e denso” do romance. Sem dúvida, trata-se de uma obra estruturada, que alcança o que propõe a si mesma. Enquanto Deus não está olhando é uma estreia segura de jovem autora pernambucana nas narrativas longas

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