ESCRITA

Autoras e críticas debatem o papel da mulher na literatura contemporânea

O JC convidou críticas e pesquisadoras para escolherem as autoras atuais indispensáveis e opinarem sobre o machismo no cenário literário

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 28/12/2014 às 5:03
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No último dia 9 de dezembro, o Caderno C publicou, em uma matéria sobre o livro Por que ler os contemporâneos? (Dublinense), uma breve lista, feita por seis críticos literários convidados, com seus destaques entre os autores importantes da literatura pernambucana contemporânea. Listas, em geral, servem mais para ressaltar o que foi esquecido no seu processo de criação do que aquilo que realmente contém – e é por isso também que são muito controversas.

O principal ponto questionado quando a matéria foi publicada foi a ausência de mulheres, tanto entre os autores recomendados como entre os críticos escolhidos – o que não foi uma opção consciente, mas se trata de uma crítica justíssima. Dela, surgiu um debate entre escritores, leitores e pesquisadores da literatura sobre as restrições que ainda existem para as mulheres participarem (e serem lidas e reconhecidas) do cenário literário local e brasileiro. Como forma de ampliar a lista e a conversa, o Jornal do Commercio convidou várias pesquisadoras e críticas para acrescentarem nomes à lista inicial (confira no infográfico os nomes escolhidos pelas que aceitaram participar) e comentarem sobre como veem a relação entre os mecanismos da produção contemporânea e as mulheres e se há machismo nesses espaços.

Infográfico

Algumas das contemporâneas indispensáveis

As mulheres tiveram destaque em algumas das premiações deste ano. A pernambucana radicada na Paraíba Débora Ferraz venceu o Prêmio Sesc de Literatura, principal do País para obras inéditas, com o romance Enquanto Deus não está olhando (Record). O Prêmio São Paulo de Literatura escolheu Anel de vidro (Ouro Sobre Azul), de Ana Luisa Escorel, como o melhor romance do ano, e ainda elegeu Opisanie swiata (Cosac Naify), de Veronica Stigger, como a melhor estreia entre o autores com mais de 40 anos. No entanto, historicamente, as autoras ainda são minoria em premiações e publicações. A pesquisadora e professora da UnB Regina Dalcastagnè, no livro Literatura brasileira contemporânea: um território contestado (Horizonte), mostra que, dos romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 pela Companhia das Letras, Rocco e Record – três das maiores editoras do País –, 72,7% dos títulos eram assinados por homens (o trabalho ainda mostra que há uma predominância gritante de autores brancos e do cenário urbano nessas narrativas).

Muitas vezes, assim como no restante das relações sociais, as restrições às mulheres no meio acontecem de forma não explícita, como destaca a escritora e pesquisadora Jussara Salazar. Elas são mais percebidas “quando as listas e publicações surgem com maioria de nomes masculinos”. “Fui recusada duas vezes seguidas numa universidade daqui por ocasião de seleção para doutorado, mesmo obtendo as primeiras notas. Na entrevista, etapa realizada a portas fechadas e com critérios pessoais, me reprovavam de modo inconsistente; a listas dos selecionados? No resultado final eram sempre 90% de candidatos homens”, exemplifica a pernambucana.

Micheliny Verunschk, poeta, escritora e também acadêmica, parte do mesmo sentimento: já sofreu resistência para ser aceita em editoras e departamentos, mas sem saber se o motivo eram questões de gênero. “Entretanto, não saber não significa que não tenha havido movimentos do tipo”, ressalta, afirmando que, como outras mulheres, já sofreu com assédios e machismo nas ruas e em outras atividades. É por isso que a ausência de mulheres na programação de eventos literários e em listas a atinge pessoalmente. “Não porque ache que deveria ter sido convidada ou citada, mas por esse tipo de atitude me lembrar o quanto as mulheres são ainda tornadas invisíveis”, expõe.

A pesquisadora e jornalista Maria Alice Amorim ainda comenta que, em rodas literárias, viveu situações em que “a abordagem masculina se dá primeiro no nível do galanteio e depois, às vezes, é que de fato vai para a troca intelectual e artística”.

Renata Pimentel, poeta e professora de literatura na Universidade Federal de Pernambuco (UFRPE), afirma que nunca sofreu resistência na literatura por ser mulher – mas ressalta que o caminho já estava aberto por nomes como Adélia Prado e por sua própria trajetória acadêmica. Pesquisadora das questões de gênero, especialmente através da obra do argentino Copi (Raul Botana), ela tentar enxergar a presença do corpo na literatura para além dos binarismo entre masculino e feminino, interessada em ver também homens que assumem a voz de mulheres e mulheres que criam vozes de homens nas suas obras. Por isso estranha que as autoras que falam que a escrita não tem gênero definido também comemorem “particular e declaradamente outras mulheres serem premiadas, porque ainda somos poucas as lidas, divulgadas e reconhecidas”. “Parece-me que continuamos na estratégia de inserção e disfarçamos isso ao repudiar o corpo da escrita, e os possíveis gêneros nela engendrados. Repito, o corpo e o gênero da/na escrita podem e são cambiáveis, mas ainda há resistências, até de ‘hábito e percentagem’, à frequência de mulheres nas listas e cânones, por isso ainda surgem os gritos e reclames”, opina.

A historiadora da literatura e escritora Luzilá Gonçalves não destaca apenas uma autora contemporânea, mas várias delas, experientes e novas: Deborah Brennand, Janice Japiassu, Lenilde Freitas, Eugenia Menezes, Marly Mota, Maria Albuquerque, Luzinete Laporte, Micheliny Verunschk, Jussara Salazar, Georgia Alvez, Mila Cerqueira, Djanira Silva, Cida Pedrosa, Luce Pereira e Lucila Nogueira. Ela escreveu sobre várias mulheres marcantes da nossa história, como Ana Paes, Filipa Raposa e Branca Dias. “Sempre me interessa o modo como, através dos séculos, mulheres conseguiram passar entre as malhas do machismo, do menosprezo e viveram sua própria história”, declara.

Para tentar mudar esse quadro, as propostas são diferentes. Para Maria Alice Amorim, é essencial não aceitar o comportamento patriarcal e agir e reagir a ele. “Importante manter a questão nos debates literários e estudos críticos, nas escolhas editoriais, nos eventos de formação de leitores e multiplicadores. Precisamos interagir em várias dimensões – sociais, políticas, econômicas, antropológicas, culturais – para que haja, de fato, a mudança de mentalidade”, destaca.

Priscilla Campos, jornalista e crítica do Suplemento Pernambuco, explica que é preciso estar sempre atento: quando concluiu uma lista de autores latino-americanos, feita para uma pesquisa, notou que só havia citado homens. “Fiquei incomodada. Com certeza existem dezenas de escritoras latino-americanas, espanholas; por que não haviam chegado a minha lista? Por que poucas são traduzidas no Brasil? Por que tenho não tenho contato com elas, de forma geral?”, aponta. “Essas são algumas perguntas que leitores, críticos e pesquisadores devem fazer a si mesmos quando se deparam com situações de hegemonia masculina.”

A poeta Jussara Salazar lembra ainda que, para além do machismo, a falta de atenção a literatura feita por mulheres decorre “de políticas culturais, interesses, troca de favores e compadrio”. “A literatura, bem como as outras áreas culturais, passam pelos mecanismos da máquina de poder, muito exercida ainda por homens ou por um pensamento inerte e sem a percepção necessária”, comenta. “Ao final todos saem perdendo, os modelos atuais são em sua maior parte defasados; quem precisaria atentar para a questão, antes de qualquer coisa, somos nós mulheres, escritoras ou não. Afinal ‘antes de ser mulher sou inteira poeta’, lembrando Hilda Hilst.”

Segundo Micheliny Verunschk, uma das formas de repensar isso é se perguntando quantos livros escritos por mulheres a pessoa leu no último ano. “Não se trata obviamente de pedir cotas para mulheres, mas de se escandalizar com o silenciamento sobre obras e autoras que vem conquistando seu espaço arduamente e cuja literatura em nada fica a dever àquela escrita pelos homens. Aliás, já é tempo inclusive de se abolir o termo ‘literatura feminina’, não? Pois, se não existe uma literatura masculina, o que resta é literatura, bem ou mal escrita, mas literatura”, questiona.

Para Renata Pimentel, é preciso mais do que ações afirmativas para solucionar o problema. “Não há outro caminho: a leitura, a insistência, a fricção com as questões de gênero. Sou cética em relação às ações afirmativas. Na verdade, mais ao modo como se estabelecem e a gerarem um modus operandi e uma falácia discursiva que valida a minoria pela minoria, ou estabelece ‘palavras de ordem’ que instauram ‘fundamentalismos de minoria’”, declara, ressaltando, no entanto, que “certa militância de formação do olhar por parte das mulheres e dos tantos matizes de corpo/desejo/gênero são fundamentais”.

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