CRÍTICA

Raimundo Carrero faz um romance tão forte quanto pessoal

Em "O senhor agora vai mudar de corpo", conteúdo e forma criam uma ficção sobre o corpo, a vida e a morte

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 01/02/2015 às 5:37
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Em "O senhor agora vai mudar de corpo", conteúdo e forma criam uma ficção sobre o corpo, a vida e a morte - FOTO: JC Imagem
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“– Vocês estão vivendo comigo, mas não em mim.”
A frase do personagem do romance O senhor agora vai mudar de corpo (Record), de Raimundo Carrero, é verdadeira, dolorosa e irônica ao mesmo tempo. Ninguém vive em ninguém; ninguém sabe como é sofrer um AVC e tentar se cuidar depois. No entanto, é saborosa porque a própria obra leva o leitor a coabitar o corpo do seu protagonista.

O livro tem início com o processo de recuperação – pensamentos, angústias, esperanças, pesadelos – do AVC que Carrero sofreu em 2010. Autor e personagem, ele conta no romance também a sua vida pregressa, para mostrar, afinal, que corpo é esse que tanto mudou. Sempre em terceira pessoa, a obra se faz como um conjunto de cenas, pensamentos e memórias, todos recheados da substância da ficção.

Carrero é um autor que preza, sempre e com ênfase, pela preocupação com a forma e a linguagem na sua obra. Se os seus livros não são provas o suficiente, vale olhar seus textos sobre a criação literária. Ali, ele busca mostrar que a literatura não é nunca uma ideia ou uma história transmitida diretamente para outras pessoas: surge com as palavras e a partir delas. Uma trama é só um projeto até que se trabalhe em suas estruturas, feitas de cimento, tijolos e outros segredos.

Talvez a ansiedade confessa do autor ao lançar O senhor agora vai mudar de corpo exista porque o livro, mesmo diante de um olhar exaustivamente técnico, é uma das narrativas do escritor pernambucano mais fortes também por seu conteúdo. Carrero está aqui em um território novo, levando para o papel (e transfigurando) sua experiência. Mais do que expor sua vida, o autor tinha outro temor: o que de a narrativa fosse uma prosa simples, um relatório, uma confissão puramente emotiva.

“O que não gosta deste mundo é da proclamação da dor, como se faz em todos os lugares e por qualquer motivo”, afirma a obra. O senhor agora vai mudar de corpo, não por acaso, passa longe dessa impressão. O volume não é uma proclamação da dor, é uma proclamação de como a vida e a morte habitam os mesmos espaços, são perigos e milagres. Carrero, personagem-autor, não se vangloria de ter sobrevivido ou de ter sofrido. Ele cria na força de sua experiência pré e pós-AVC uma ficção que não deixa de estar cheia de recursos, imagens e metáforas.

Quem acompanhou de alguma forma a vida do autor, verá que está ali um acerto de contas duplo: com sua própria vida e com a literatura. Não é um diário, mas um mergulho no próprio corpo e na própria alma, entre elucubrações e delírios com um velho, um anão, um homem alto e magro, um homem gordo e uma mulher grávida, por exemplo. São imagens sóbrias e decisivas.

Assim, a prosa de Carrero diz e esconde ao mesmo tempo. É uma tática eficaz, que faz o leitor se questionar ao longo da narrativa sobre o que é metáfora e o que é realidade. Houve mesmo uma moça com o peito cortado que visitou o personagem quando ele era músico? O livro é forte justamente porque não depende dessas respostas para mostrar como corpo e vida são assuntos sempre relacionados. É por isso que o físico na narrativa dialoga com política, fezes, sombras, Cristo e arte. No fim, mudar de corpo é a chance de avaliar a própria passagem pela existência, transformar-se em outro através de um mergulho em si mesmo.

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