A cronologia é simples. Até o ano passado, os romances do escritor francês Patrick Modiano, apesar de já terem sido publicado no Brasil, estavam fora de livrarias e catálogos no Brasil. Além disso, quase nunca o nome do autor era citado em críticas ou reportagens no País. No dia 10 de outubro de 2014, a maior honraria literária do mundo, o Prêmio Nobel, escolheu Modiano para ganhar os 8 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 2,67 milhões). De imediato, os direitos dos livros do escritor passaram a ser disputados por editoras brasileiras na Feira de Frankfurt, a principal do mercado editorial, e novas edições e republicações foram anunciadas.
O resultado disso é que Modiano tem agora cinco livros nas nossas prateleiras e, até o final de março, saem mais dois, totalizando três reedições e quatro títulos inéditos, entre eles, uma obra infantil – nada mal para um autor que era raridade. O motivo é fácil de se entender: o Nobel, que consagra um autor para a história, também gera uma demanda imediata de leitura. O público quer logo saber se uma obra realmente merece o destaque obtido.
Até o final do mês, a Record publica Flores da ruína, um dos romance maduros do autor francês. Lançado originalmente em 1991, como parte da Trilogia Essencial do autor, é outra amostra da prosa noir e reflexiva de Modiano. Se, de fato, as obsessões do escritor parecem constantes ao longo de sua obra, o mergulho que ele faz nelas é cada vez mais profundo – como na famosa frase de Heráclito, as águas não são as mesmas e o autor não é o mesmo.
Modiano gosta de partir de pelo menos dois pontos nos seus romances: o afeto pela geografia urbana e o terror da memória. Os dois elementos estão presentes em Flores da ruína, um livro que começa a esmo, com um passeio do narrador por Paris e a lembrança de uma notícia, o suicídio de um casal de namorados em 1933. O volume é uma espécie de autoficção (há um pai desaparecido, como na vida de Modiano, e um irmão chamado Rudy), em que um personagem vê a sua cidade habitada por fantasmas – homens desaparecidos, amores e cenários transfigurados.
A trama do casal é um pretexto para o autor investigar ainda mais Paris e suas memórias – não há nenhuma investigação histórica metódica. Trata-se de uma espécie de elegia a Paris e à própria vida. Na verdade, tentar diferenciar esses dois elementos na obra de Modiano seria um exercício inútil: seu maior prazer literário talvez seja o de citar o nome de ruas e lugares da capital francesa, fazendo sempre uma sobreposição da imagem do presente com o passado. Mais singular ainda é sua obsessão com o período da ocupação alemã na cidade, propício para mentirosos, contraventores e bandidos.
A raiz disso é a história do seu pai, Albert, um judeu salvo da prisão por uma ajuda estranha, talvez vinda de um grupo francês ligado aos nazistas. Modiano tenta chegar a uma questão no romance (que é posta de forma ainda mais clara em Ronda da noite, por exemplo): o que leva alguém a tirar um proveito (parcial ou absoluto) de uma situação criminosa? É importante se preocupar com os crimes e erros em um contexto que incentiva os piores atos?
O grande sucesso de Modiano é dar forma a sua obsessão sem contaminar o leitor com a necessidade de encontrar redenção (ou condenar) para o seu pai. O narrador do livro fala da impressão de ter participado de um crime, sabe-se lá qual, como “cúmplice ou testemunha”. Nos becos e jardins de Paris, o passado não é uma fuga, mas o oposto disso: uma forma de enfrentar a culpa de um possível erro indefinido, etéreo. Em outro momento, o personagem comenta que tenta enxergar os grandes prédios que substituíram um antigo mercado de vinhos parisiense: “Mas, embora eu semicerre os olhos na escuridão, não os vejo”. Para o autor francês, o passado se nega a ir embora, com a força do afeto e o terror dos fantasmas.
Flores da ruína é um livro intimista de um autor desavergonhadamente autocentrado nas próprias visões, memórias e temas. Assim como Paul Auster e Philip Roth, a acusação de egoísmo seria justa – mas, nesses três casos, usar esse argumento é criar obstáculos para narrativas sinceras, em que o autor se expõe vorazmente.
Sobre um amigo misterioso, o narrador da obra fala: “Ele havia desaparecido desse jeito repentino que eu notaria mais tarde em outras pessoas, como meu pai, e que deixa alguém perplexo a ponto de não restar outra opção a não ser procurar provas e indícios para persuadir a si mesmo de que essas pessoas de fato existiram”. Em última instância, esse é o motor, a maldição e o limite do trabalho de Modiano: ter certeza de que os crimes, a guerra, Paris e até seu pai não são uma ilusão de sua própria mente.