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Conheça a Anacaona, a editora francesa especializada em literatura brasileira

Criada por Paula Salnot, a iniciativa já 17 títulos no seu catálogo, incluindo obras dos pernambucanos Marcelino Freire e Raimundo Carrero

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 10/05/2015 às 5:42
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Criada por Paula Salnot, a iniciativa já 17 títulos no seu catálogo, incluindo obras dos pernambucanos Marcelino Freire e Raimundo Carrero - FOTO: Divulgação
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Se os números e o sucesso econômico forem o critério principal, então a cadeia produtiva da literatura pode ser dividida em dois tipos de loucos: os que escrevem e os que editam livros. Nesta última categoria, o caso pode ser ainda pior, pois exige mais tempo e dinheiro para ser realizado. Apesar disso, é de loucuras que a arte é feita; foi uma quase insanidade, movida por uma paixão improvável e somada a um esforço desmedido, que gerou uma das mais singulares editoras francesas atuais, a Anacaona.

Criada pela tradutora francesa Paula Salnot, a casa editorial tem 17 livros no catálogo com uma particularidade: são todos de autores brasileiros. Um dos destaques do último Salão do Livro de Paris, em março deste ano, a Anacaona surgiu justamente de uma paixão pelo idioma e pelo País. “Minha relação com o Brasil é tardia, quando eu já tinha 24 anos e decidi aprender português. Minha professora – hoje uma amiga – brinca que eu fui uma brasileira em uma vida passada, porque em pouquíssimo tempo já estava falando bem”, conta Paula, em entrevista por telefone (e em bom português) ao JC. Por muito tempo, inclusive, as pessoas acreditavam que ela, filha de um venezuelano nascida na França, tinha alguma relação familiar com o Brasil.

Mas foi só em 2009 que a tradutora se aproximou mais do País. Ao travar contato com a literatura marginal e urbana daqui, feita por autores como Paulo Lins e Ferréz, apaixonou-se de vez pela nossa escrita. No entanto, não encontrava nas prateleiras francesas obras brasileiras alternativas e não via surgir nos círculos literários interesse por aquela prosa. Pensou que, como tradutora e entusiasta, podia dar início a um pequeno projeto de levar obras alternativas às livrarias do seu país.

“Não achei que ia ficar rica, claro, mas vi que havia uma lacuna, com muitos livros bons que não eram traduzidos. Na França não se falava nada da literatura marginal e nem se tinha aqui um movimento parecido”, explica Paula, sempre animada. “Comecei com essa parte e, depois, fui buscando novas coleções, porque achei que podia estar criando algum tipo de clichê do Brasil a partir da favela. E, quando você ama uma pessoa ou um país, você quer mostrar todos os lados possíveis dele.”

A coletânea Je suis favela (Eu sou favela, em tradução literal), publicada em 2011, ganhou até uma continuação em 2014, Je suis tourjous favela (Eu sempre sou favela, em tradução literal) – participaram delas nomes com Ferréz, Eliane Brum, Ana Paula Maia e Marcelino Freire. Foi ela que fundou o primeiro selo da editora, o Urbana, que se volta para a prosa que retrata as periferias urbanas.

Para fugir do risco de bater só em uma tecla, Paula investiu em duas outras visões do Brasil: a coleção Terra, que mostra visões regionais (mas nem sempre regionalistas), e a Época, que traz a produção contemporânea. Com elas, Paula pode explorar outras dicções e trouxe para o seu catálogo nomes como Marçal Aquino, João Luiz Carrascoza, Ana Paula Maia, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e os pernambucanos Raimundo Carrero e Marcelino Freire.

Todos os autores, com exceção de Carrero (que ganhou uma versão esmerada feita por Hubert Tézenas), foram traduzidos por Paula. “Como editora, queria mostrar que é possível trazer diversidade e, como tradutora, queria trabalhar ao mesmo tempo com nomes como Ferréz e José Lins do Rêgo”, diverte-se a dona da Anacaona. Como leitora voraz, ela foi chegando a cada um desses livros e autores a partir de recomendações. “Quando gosto, sinto uma vontade de guardar as obras comigo, como se elas fossem meus nenéns. Sei que, quando a editora crescer, vou precisar subcontratar tradutores, mas, por enquanto, esse é o meu luxo: pode escolher o que eu traduzo e traduzir o que eu gosto”, define Paula.

Apesar de trabalhar com várias obras ao mesmo tempo, ela diz que o trabalho de traduzir é um pouco o de atriz. Para criar a versão francesa do romance Nossos ossos, de Marcelino Freire, ela diz que, com ajuda de imagens e vídeos do Google, por exemplo, tentou se sentir como uma prostituta da periferia paulista.

O próprio Marcelino destaca a coragem da editora e tradutora ao pegar uma gama ampla de livros. “Paula é corajosa, ousada. Fala muito bem português. Tem um excelente ouvido. E não tem essa de ficar enrolando o autor. Já traduz, conversa com a gente, troca impressões. E mete bronca. Eu gosto de gente assim, sem corpo-mole. Por isso que ela é maratonista. Tem o corpo duro, tem disposição, tem garra”, comenta o autor pernambucano. “Nossos ossos é um livro difícil. Para ela não tem isso: ‘Difícil é, mas não impossível’. Eu amo a Paula Anacaona por isso. Ela está do nosso lado. Ela é brasileira e não sabe.”

A produção de Raimundo Carrero chegou até a criadora da Anacaona através do seu agente, o francês Stéphane Chao. Conheceu a editora em uma edição da Fliporto, em Olinda. “Eu queria levá-la para conhecer o Sertão, mas ela não pode ir. Também já a visitei na França. O seu trabalho de pegar jovens autores e uma literatura que foge do óbvio e levar para a França é essencial”, conta o autor. “A repercussão de Bernarda Soledade por lá tem sido ótima, foi descrito com uma tragédia que é brasileira sem deixar de ser universal.”

A visita à Fliporto não foi por acaso. Para não perder a familiaridade com o português brasileiro, Paula vem anualmente para cá. Quando estava traduzindo Menino de engenho, de José Lins do Rego, passou um tempo na Paraíba e fez um roteiro pelos cenários do romance. “Para um tradutor, ir frequentemente para o país é essencial, para manter contato com a língua e com as pessoas”, ressalta.

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O mais impressionante do trabalho de Paula, no entanto, não é a versatilidade nas traduções que realiza: é o esforço para criar um público para a literatura brasileira que vá além dos clássicos ou dos campeões de vendas. Marcelino destaca esse trabalho de “formiguinha” dela. “Paula é uma batalhadora. Eu me reconheço nessa luta.

Somos coirmãos nessa guerrilha”, define o escritor. “Ela sai com os livros, arrastando um carrinho para cima e para baixo. Divulga a obra nas universidades. Viajei muito com ela pelos trens de Paris. Eu dizia assim: ‘Deixa eu ajudar no peso’. Ela dizia: ‘Sabia que eu participo de maratonas? Eu sou uma atleta. Fazer livros também me ajuda a manter a forma e a saúde’. Essa é a Paula.”

Não é realmente um ofício simples, a editora confessa. “Livros sempre são um produto difícil. Os franceses, como os brasileiros, preferem ficar no Facebook a ler livros. No começo, eu fiz mais coletâneas sobre favelas e outras sobre o futebol. Admito que os temas são um pouco clichês, mas o clichê pode ser uma forma de pegar o leitor pela mão para mostrar algo que ele não esperava”, expõe. Na coletânea sobre futebol, por exemplo, há textos que passam longe do óbvio – o catarinense Rogério Pereira criou uma narrativa em que assistir a uma partida de futebol é, na verdade, a única forma do filho existir para o pai.

Quando Paula passou a publicar obras que fugiam dos temas dos problemas sociais urbanos, enfrentou alguma resistência do público. Mas, aos poucos, conseguiu criar uma rede de pessoas interessadas nas várias facetas da literatura brasileira. “Eles sabem o cuidado que um livro da Anacaona têm. Isso foi feito pouco a pouco; hoje eu noto que vendo um pouquinho mais a cada nova edição”, comemora a francesa.

Um dos momentos importantes para a Anacaona foi o Salão do Livro de Paris deste ano, que celebrou a literatura brasileira. No estande da editora, muitos franceses passavam para pedir sugestões, admitindo que conheciam pouco da nossa produção – o saldo de vendas foi positivo e deixou a editora com mais esperança.

As tiragens da editora variam hoje entre 2 mil (coletâneas) e mil (demais livros) exemplares, o que coloca a Anacaonda como uma editora de patamar médio. Os planos de Paula são os de continuar a traduzir e publicar cerca de cinco títulos por ano. O mais recente é A história de Poncia, de Conceição Evaristo – a autora mineira deve ter outro livro, Becos da memória, editado no ano que vem.

“Penso em fazer um novo livro da literatura marginal, um quadrinho que Ferréz fez com o Alexandre de Maio, chamado Desterro. É uma novidade dentro da editora, minha primeira HQ”, ainda avisa.

Sombra severa, de Raimundo Carrero, também está nos planos, novamente com tradução de Hubert Tézenas, assim como o romance João Miguel, de Rachel de Queiroz. São os futuros passos da tradutora para tentar divulgar a nossa literatura em meio à diferença de idiomas, os clichês, o mercado difícil e o pouco interesse por autores alternativos. E, assim como as dificuldades, a literatura brasileira é imensa – do tamanho da paixão de Paula por ela.

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