ENTREVISTA

Frédéric Martel vem ao Recife para falar das várias internets que existem

Ao JC, o pesquisador conta o que descobriu na pesquisa para o livro Smart, que fala também do Brasil e do Porto Digital

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 03/11/2015 às 5:34
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Ao JC, o pesquisador conta o que descobriu na pesquisa para o livro Smart, que fala também do Brasil e do Porto Digital - FOTO: Divulgação
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Por mais que a web pareça estar nas mãos do Google e do Facebook, o jornalista e sociólogo francês Frédéric Martel não gosta de falar em “internet”, mas sim em “ internets”. No Recife para lançar , Smart – O que Você Não Sabe sobre a Internet (Civ. Brasileira), o pesquisador participa de mesa nesta terça (3/11), às 9h, no auditório do CAC, na UFPE, ao lado de Maria Eduarda da Mota Rocha, Thiago Soares e Schneider Carpeggiani. Ao JC, ele fala sobre a obra e sobre o papel do Brasil e do Recife na cultura e no mercado digital.



JORNAL DO COMMERCIO – Em Smart – O que Você Não Sabe sobre a Internet, você pesquisou a cultura e a economia da internet sem se focar só no Vale do Silício. Como decidiu que tinha que olhar para essas diferentes “internets” que coexistem atualmente?
FRÉDÉRIC MARTEL –
Eu sou um pesquisador de campo e viajei por mais de 50 países para fazer Smart. Tem sido uma longa jornada. Alguns pesquisadores e jornalistas fazem esse tipo de trabalho em seus computadores, viajando através da web. Eu fiz outra coisa, mais contra-intuitiva: fui para a “vida real” para entender as diferenças entre os vários usos da internet. E isso mudou tudo. Quando estava em campo, eu descobri que a internet era diferente em todos os cantos: as redes sociais não são as mesmas no Brasil e na China; o conteúdo é diferente em toda parte; os usos da internet são muito variados. E é por isso que eu uso a palavra internet no plural.
 
JC – Você fala muito do Brasil no livro, que é considerado por muitos um país apaixonado pelas redes sociais, mesmo nas camadas mais pobres. Que aspectos do Brasil e do nosso uso da internet lhe interessaram?
MARTEL –
Eu me importo muito com o Brasil. E, por sinal, a edição brasileira de Smart é totalmente atualizada: acrescentei algumas partes novas sobre o Brasil, fiz um prefácio e criei um capítulo totalmente novo e longo sobre curadoria, futuro do jornalismo, crítica cultural e o ato de recomendar – o capítulo não está sequer na versão original em francês ou na versão espanhola do livro. Vem em primeira mão para os brasileiros.
E, sim, eu fiquei muito impressionado com o uso da internet e das redes sociais (o WhatsApp, por exemplo) nas favelas. Eu acho que o Brasil pode inventar aplicativos e ferramentas para empoderar pessoas em guetos, bidonvilles, slums, townships – e eu descobri na África do Sul, no Quênia, na Índia e até mesmo nos guetos de negros nos EUA como você pode mudar, com a internet, a vida das pessoas, ajudá-las a reinventar a própria vida e até escapar da pobreza.
Mas o Brasil tem muitas outras habilidades: vocês estão avançados na fronteira entre meio ambiente e internet; são muito bons produzindo conteúdo (por exemplo, expandindo a vida de personagens de uma novela apenas para a web); estiveram na frente do mundo na discussão dos direitos autorais (com Gilberto Gil e as melhorias no Creative Commons). E, claro, existe a juventude, os criadores de starp-ups, brasileiros que inovam em todos os cantos, criando aplicativos, começando seus próprios negócios. E, ao fazer isso, eles modificam suas próprias vidas e seus países.
 
JC – Você visitou o Porto Digital. Uma cidade periférica como o Recife pode competir no mundo digital? O Porto Digital pode levar para o mercado as especificidades locais quando cria algo?
MARTEL –
Recife não é uma cidade periférica. Ela foi um dos maiores portos da América Latina por séculos. Agora, ela precisava se adaptar ao declínio dos portos e à internet. E vocês conseguiram. O Porto Digital é, para mim, o modelo de uma bem-sucedida smart city (cidade inteligente). É muito melhor que sua equivalente na Rússia (Skolkovo), em Dubai (Cidade da Internet) ou no Quênia (Konza). Ao mesmo tempo, o objetivo não é se tornar o próximo Vale do Silício, e sim ajudar o Nordeste. Existe aí uma população grande o suficiente para que a cidade possa se tornar uma capital digital regional.
Todo o meu livro explica que a internet não é feita de uma conversa global, mas de uma conversa fragmentada. Uma cidade como Recife pode ser a líder da internet regional. O futuro da internet é geolocalizado, territorializado, móvel e fragmentado.
No entanto, no Brasil, nós não precisamos só do Porto Digital. Nós precisamos de cem Portos Digitais. Na Índia, o primeiro-ministro Modi disse que ele vai criar cem novas smart cities. Vocês tem que fazer isso também no Brasil. Mas eu não escutei, infelizmente, Dilma Roussef dizendo algo parecido!
 
JC – Você diz que, ao contrário do que os pessimistas dizem, a internet não é dominada por uma linguagem ou cultural. Você vê uma disputa clara entre o global e o local na internet?
MARTEL –
Eu acredito de verdade que a internet não é – e nem será – uniformizada. Em todo os cantos, existem fronteiras na internet. Fronteiras de linguagem, da esfera cultural, de comunidades. Todo mundo quer ser global, mas será muito difícil no futuro ser o próximo Google ou o próximo Twitter. No entanto, em aplicativos, na nuvem, nos mecanismos de busca de nicho, na criação de conteúdo, no streaming de música, as iniciativas brasileiras podem ser fortes no Brasil e na América Latina. Mas você precisa, para ter sucesso nisso, de uma boa banda larga em todos os cantos. Não entendo porque isso não foi prioridade do governo de Dilma Roussef.
Eu gostei do debate sobre o Marco Civil, mas ele falhou parcialmente. Por que? Porque não faz sentido regular a internet apenas contra os EUA. O Brasil deveria ter feito o Marco Civil não só com uma abordagem nacionalista, mas junto com a Europa e com aqueles que, nos EUA, têm a mesma visão que nós (como a Comissão Federal de Comunicação, a Suprema Corte, etc.). E o Brasil deveria ter regulado as suas próprias corporações. A banda larga e o 3G são muito caros no Brasil; o roaming é absurdo, as assinaturas digitais de TV são muito caras também. Esses preços precisam diminuir rapidamente. E isso é tudo vontade política e regulação. Infelizmente, também não era uma prioridade de Dilma Roussef.
 
JC – Você também fala do conflito entre a crítica cultural tradicional e as novas formas de mediação. A crítica cultural está morrendo? Na era das redes sociais, existe espaço para o crítico?
MARTEL –
Sim, nesse novo capítulo de Smart, falo de uma “smart curation” (curadoria inteligente) – criei essa expressão que agora é bastante usada na América Latina e Itália. A ideia principal é que, bem, a crítica tradicional está morrendo, e os algoritmos não são (e não serão) muito eficientes. Então nós temos que inventar algo intermediário: ferramentas com algoritmos e curadoria humana, misturando engenheiros com os “saltimbancos”, a matemática com as letras, as máquinas com os humanos. É isso que chamo de “smart curation”.

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