CARTA

Em livro, jornalista do Charlie Hebdo assassinado em atentado fala sobre a islamofobia

A obra, editada no Brasil um pouco antes dos atentados de Paris, faz defesa da liberdade de expresão e pede combate ao "verdadeiro racismo"

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 21/11/2015 às 5:29
Francis Guillot/AFP
A obra, editada no Brasil um pouco antes dos atentados de Paris, faz defesa da liberdade de expresão e pede combate ao "verdadeiro racismo" - FOTO: Francis Guillot/AFP
Leitura:

“Se você acha que um desenho é mais perigoso do que um drone americano (...), então, boa leitura, porque esta carta foi escrita para você.” Dois dias antes de ser assassinado na invasão da redação do jornal francês Charlie Hebdo, em janeiro de 2015, o cartunista Stéphane Charbonnier, ou somente Charb, havia concluído a carta citada acima, um desabafo e uma reflexão sobre o cenário de tensão midiática na França. Publicado na semana passada no Brasil – por acaso, alguns dias antes dos atentados terroristas em Paris –, o volume Carta aos Escroques da Islamofobia Que Fazem o Jogo dos Racistas (Casa da Palavra, 96 páginas) traz o texto feito pelo cartunista, uma tentativa de explicar a sua visão (e a do jornal) sobre o assunto.

O Charlie Hebdo, com seu humor mordaz e quase anárquico, já era há um bom tempo acusado de ser islamofóbico por suas charges e desenhos de Maomé ou jihadistas, além de ser constantemente ameaçado e processado por conta disso. No volume, Charb trata o tema com seriedade, mas uma seriedade que, como não podia deixar de ser, abre espaço para ironias (e alguns exageros, também). Uma das suas motivações é, antes de tudo, explicar porque considera as ideias de “racismo” e “islamofobia” diferentes.

Um dos problemas, para ele, de se falar em islamofobia é que o termo é pouco preocupado com os indivíduos que sofrem preconceito: quem acusa alguém de islamofobia normalmente está tentando defender a “religião do profeta Maomé” e não uma vítima direta. As ideias (e doutrinas) podem ser criticadas e até achincalhadas, defende, as pessoas é que não devem sofrer com isso. É o racismo, afirma, que é o grande problema da França (e da Europa), que ainda vê todos os árabes e descendentes como islâmicos e, ainda mais absurdamente, potenciais terroristas.

A obra é justa: dispara contra a direita católica, o Partido Socialista, o judaísmo e a grande mídia. O seu alvo principal, no entanto, são as associações e pessoas que, em nome da defesa de muçulmanos, tentam atacar à liberdade de expressão – fala neles até mais do que nos terroristas em si, que terminariam invadido o jornal e o assassinando (o terrorismo em solo francês, felizmente, era uma questão abstrata até então). É um livro relativamente direto, que mostra a posição de Charb: a de uma esquerda ateísta, que ironiza a religião porque a vê como fruto de conservadorismo e discórdias, mas que também não se incomoda com críticas ao ateísmo.

Há vários argumentos importantes na obra, que serve especialmente como um chamado para lembrar que nem tudo que fala em nome de uma minoria é de fato representativo dela; e que enxergar o silêncio sobre um assunto como respeito é uma distorção surreal. No entanto, Charb também recai no simplismo: não quer (com razão) equiparar a islamofobia com o antissemitismo das vésperas do nazismo, mas parece fingir que ela é apenas mais um estereótipo religioso que está contemplado dentro da ideia de racismo, como se não fosse um problema crescente e recorrente na Europa.

Seu desprezo pela religião também se confunde com uma infantilização dos seus seguidores. Em dado mesmo quer dizer que, porque as doutrinas se afirmam como únicas verdades, os católicos ou muçulmanos são opositores ativos de outras religiões – sua facilidade em generalizar vai contra o próprio intuito da sua carta.

Charb tem razão em muita coisa, até porque, na tensão entre laicidade, religião, racismo e xenofobia que a França vive, a liberdade de expressão (e o humor, portanto) não deve ser nunca o alvo. Seu livro é essencial (e lançado em um momento oportuno) porque reafirma isso e dá exemplos de como o Charlie Hebdo, entre outros casos, ficou na mira de processos e ameaças, ao contrário de ser o foco de críticas e debates, como deve acontecer com as ideias. Por um outro lado, o autor também não é justo quando diz que a perseguição aos muçulmanos que moram na Europa é parte de um racismo mais geral que, esse sim, deve ser combatido. A islamofobia é, sim, muitas vezes usada como fachada retórica ou pretexto por organizações conservadoras, mas não deixa de existir e ser uma extensão perversa do preconceito e da xenofobia.

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