VERSOS

Everardo Norões fala sobre seu novo livro de poesia

Vencedor do Prêmio Portugal Telecom, o autor reúne poemas com sabor - e nódoa - no livro Melhores Mangas

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 14/02/2016 às 5:38
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Vencedor do Prêmio Portugal Telecom, o autor reúne poemas com sabor - e nódoa - no livro Melhores Mangas - FOTO: JC Imagem
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Nos versos de Melhores Mangas, novo livro do escritor cearense radicado no Recife Everardo Norões, poesia, vida e crítica tentam coexistir com arestas e doçuras. Vencedor do Portugal Telecom em 2014 com os contos de Entre Moscas, o autor conversa nesta entrevista sobre a nova obra e o diálogo com nomes como Joaquim Cardozo.

JORNAL DO COMMERCIO – As frutas são uma imagem recorrente no livro, que tem ainda uma capa amarela que afirma e desmente a manga citada no título. Os poemas são, de alguma forma, próximos aos frutos? Como chegou a essa imagem?
EVERARDO NORÕES –
O poema também é fruta, deve ter sabor e, se for o caso, deixar alguma nódoa. Alguns, como a nódoa do caju, que nunca sai. Uma marca. Além disso, é criação da natureza, de nossa natureza. Assim, podemos dizer: um poema é um fruto de palavras, que também são sementes.
No caso da manga, dizem que as mangas dos cemitérios são sempre as melhores. Então, achei interessante construir um poema sobre ela, a manga, fazendo alusão ao nosso único herói que combateu ao lado de Bolívar pela independência da América Latina, o general Abreu e Lima. A ele lhe foi negada sepultura pela Igreja, acabou sendo enterrado no Cemitério dos Ingleses. Filosoficamente, significa que temos um bom adubo, mas não conseguimos colher os frutos. É uma espécie de metáfora.
Quanto à imagem da capa não foi ideia minha, foi da própria editora, no caso de Márcio André. Ele colocou um limão pensando no efeito do choque. Alguém olha a capa lê manga, enxerga o limão. Um contraste entre o doce e o ácido. Uma provocação que, de certo modo, responde à intenção de alguns dos poemas do livro.
 
JC – Em um dos poemas, você fala em descobrir de que forma “morre o Recife”, e a especulação imobiliária e o poder do capital podem ser intuídos em outros momentos. A sua imagem do Recife é uma cidade em decadência, apodrecendo?
EVERARDO –
Há cidades que foram totalmente destruídas. Reconstruídas, voltaram a ser tão belas como antes. Para que isso aconteça é preciso um sentimento coletivo de pertencimento ao lugar, uma forma de amor à cidade, como se ela fosse nossa própria casa. Recife foi uma cidade belíssima, mas está degradada, apodrecida. Não apenas em razão da ofensiva das grandes construtoras e da falência do poder público. Mas sobretudo, em razão da profunda falta de consciência cívica, generalizada em todas as classes. Aqui as pessoas cuidam do que é exclusivamente seu, mas ignoram o que é coletivo, o que existe em torno delas. Como a poesia sempre se antecipa, isso me faz lembrar o verso de Carlos Pena, que traduz metaforicamente essa nossa circunstância: “Então, pintei de azul os meus sapatos/ por não poder de azul pintar as ruas”.
Vou revelar aqui: um dos poemas do livro, intitulado P.S. é, na verdade, uma pequena homenagem a Pelópidas Silveira, que foi, a meu ver, o grande cidadão do Recife. Um político humanista, culto, que tinha a virtude do diálogo e, além disso, era um grande engenheiro, pensou sua cidade como algo seu. Como digo no poema, “imaginou-se/ cortado em avenidas,/ por onde deveria passar/ o pão cotidiano da alegria”. Homens como ele, Arraes, Antonio Baltar, Joaquim Cardozo ou Josué de Castro fizeram parte de uma geração que foi banida. E o resultado é o que vemos, não somente no Recife, mas em outras cidades brasileiras.
Por isso, quando vi uma foto de Benício Dias, três urubus em cima de um edifício em demolição, logo imaginei uma conversa entre eles, tentando decifrar, do alto, de que forma morre o Recife. Ou apodrece.
 
JC – Algo que tem força na sua obra é a referência à poesia de outros autores, sempre posta como um diálogo. Não só os versos, mas a relação entre a escrita deles com a própria vida parece ser uma questão para você. Acredita que um autor às vezes também é mais do que o que ele coloca no papel?
EVERARDO –
Cada um de nós é tributário de outros autores, os que admiramos e nos marcaram. Entre eles, há alguns especiais, que conseguiram fazer a junção entre as linhas negras do livro e a gota encarnada da existência. Nazim Hikmet, por exemplo, foi um dos poetas que me tocaram. Quando fui a Istambul, logo que cheguei ao hotel li um poema dele. Viveu quase toda a vida detrás das grades, por ser comunista, mas seus poemas são de uma grande alegria. Talvez ela viesse da grande coerência entre a sua vida e a sua obra.
 
JC – Ao falar de Nazim Hikmet, de Gregório Bezerra e do Recife, você parece evocar uma junção entre poesia e política. Entende que esses campos se unem na sua escrita? Você se preocupa em fazer uma poesia mais próxima do mundo?
EVERARDO –
A política merece ser entendida como nossa sorte coletiva, nossa maneira de habitar o mundo. Não tenho nada contra, mas penso que ela, a poesia, não pode se limitar a acrobacias verbais, a jogos florais ou a circunstâncias líricas. Ela deve ser cada vez mais um instrumento de reflexão, de criação de uma utopia do texto, que nos ajude a tornar mais fácil nossa passagem. Essa deveria ser uma das funções da arte em geral. Num de meus contos, um artista se questiona sobre nossa pintura de mulatas e coqueiros e se pergunta por quê ninguém retratou nosso calvário latino-americano, como Brueghel o fez quando os Países Baixos viviam sob o jugo da Espanha. A cena de Gregório Bezerra puxado por uma corda por um certo coronel Vilocq bem que merecia um painel ou um afresco, como fez Picasso com Guernica.
 
JC – Joaquim Cardozo também surge como um motor da poesia, com seus versos em que ciência e lírica estão próximos. Acredita que a obra dele precisa de mais atenção e leituras? Você planeja organizar novos obras sobre ele?
EVERARDO
– Joaquim Cardozo não é apenas um motor de poesia. Referi-me a ele como “o homem universo”. Poucos intelectuais no país foram dotados de um conhecimento tão vasto e, ao mesmo tempo, de uma consciência política tão profunda. Por conta disso, não é um poeta de leitura fácil. Mas aos poucos começa a ser percebido por intelectuais que olham mais fundo. Mais recentemente, o poeta e crítico Manoel Ricardo de Lima lançou o livro A Forma Formante, coletânea de ensaios sobre a obra de Joaquim Cardozo. O cineasta Joel Pizzini projeta fazer um filme em torno do poema O Último Trem Subindo ao Céu. E Manoel Ricardo tem um projeto de relançar a obra teatral.
 
JC – Tem planos para novas obras em 2016? Pretende voltar à prosa depois do Prêmio Portugal Telecom?
EVERARDO –
Estou escrevendo um novo livro de contos. Alguns deles devem ser publicados em suplementos e em revistas online, como a Pessoa, de São Paulo, e o Suplemento Pernambuco.

Confira a crítica do livro Melhores Mangas:

A poesia talvez esteja, como o Tupã de um dos poemas do cearense radicado em Pernambuco Everardo Norões, entre o trovão e o tiro de misericórdia. O poder que as palavras têm de ser sempre mais é aqui o que move a escrita. Doces ou duros, os versos de Melhores Mangas (Confraria do Vento) tentam ser misericordiosos e esperançosos ao mesmo tempo, críticos e contemplativos – buscando a irmandade da lírica com a ciência, harmonia dissonante que Everardo encontrou na vida e na obra de Joaquim Cardozo.

Falar em trovões pode sugerir que a escrita do autor é feita de rompantes ou do impacto de uma frase ou uma imagem, mas a poética de Melhores Mangas não parece estar a procura disso. Escritor de palavras dosadas, Everardo mede suas palavras com reflexão, crítica e política – seus versos não são ensaísticos, mas também não são meras confissões gratuitas. A vida e tudo que está nela, incluindo a literatura e a cidade, decanta na obra de Everardo.

W. H. Auden, Joaquim Cardozo e Nazim Hikmet são evocados nesse diálogo poético, que é metaliterário sem ser mesquinho. O volume, dividido em três partes, reúne os primeiros poemas sob o título de Sol – são os poetas e a vida que emana das suas obras que contaminam esse pedaço inicial. Depois, Everardo escolhe nomear seus textos através de bichos – talvez o momento em que as suas criações tenham uma maior unidade, compondo basicamente um poema maior, que fala de bichos nas sementes, na noite, na lama. O final do volume, Sem, é a parte mais forte dele: é como se a ausência e o negativo dessem a força madura e podre desses frutos de Everardo. Ali, os urubus “tentam decifrar/ do alto,/ de que forma/ morre o Recife” – a crítica a uma cidade desgovernada é constante no livro, por sinal – e “o deus prometido,/ morre,/ enquanto rezas”.

É nessa poesia crítica, feita da “fala das falhas, da fadiga,/ da folga que lhe falta” que alimenta Alberto da Cunha Melo, que a força da criação literária de Everardo habita. E é novamente em Joaquim Cardozo que o autor encontra a poética generosa que depois ele recria e retrabalha. Sim, as Melhores Mangas esperam ser, como diz um de seus versos, “não apenas/ mero artifício, acrobacia lúdica/ mas exercício de viver/ além do texto”.
k Melhores Mangas, de Everardo Norões – Confraria do Vento, 96 páginas, R$ 37

 

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