VERSOS

A poesia que doma a explosão de João Cabral de Melo Neto

O poeta é homenageado da quarta edição do Festival RioMar de Literatura Pernambucana

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 27/03/2016 às 5:21
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O poeta é homenageado da quarta edição do Festival RioMar de Literatura Pernambucana - FOTO: JC Imagem
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Domar a explosão com a mão serena e contida, como o toureiro Manolete, imortalizado no poema Alguns Toureiros. A poética de João Cabral de Melo Neto, que ele soube tanto encontrar e descrever nas pessoas, objetos, rios e cenários, sempre foi um convite a evitar os caminhos falsos, os atalhos das palavras, dos sentimentalismos e da emoção adestrada. Um dos marcos da poesia moderna brasileira do século 20, o autor pernambucano é o homenageado do Festival RioMar de Literatura Pernambucana, que começa amanhã e vai até quinta no Teatro RioMar.

Como João Cabral mesmo dizia, o papel do poeta é acrescentar “uma polegada” ao que já foi dito antes – e o caminho escolhido por ele foi o da recusa do óbvio, do lírico, do fácil e dos clichês. A sua poética da pedra, do método, da concisão ou do anti-lirismo, dependendo de quem descreve, será abordada a partir de vários olhares no evento, organizado por Carmem Peixoto em parceria com a Academia Pernambucana da Letras. Autores pernambucanos como Marcus Accioly, Lucila Nogueira, Ana Maria César, Lourival Holanda e Raimundo Carrero vão abordar a produção literária do criador de Morte e Vida Severina. Além de mesas e palestras, a Dispersos Cia. de Teatro fará leituras de poemas do autor, e, na abertura, a diretora Cristina Aragão vai exibir e falar sobre o documentário Morte e Vida Severina – 60 Anos Depois (confira a programação completa).

O poeta Marcus Accioly teve no autor pernambucano não só uma referência literária, mas um “mestre e amigo”. Para ele, junto com Augusto do Anjos, João Cabral marca um momento de ruptura na poesia brasileira. “Augusto dos Anjos comparava a ‘lua magra’ a um ‘paralelepípedo quebrado’, uma imagem inimaginável no parnasianismo. João Cabral começa com um poeta do sono, do surrealismo, mas logo se converte em um poeta da pedra”, comenta o autor de Nordestinados.

Para ele, a ruptura de Cabral acontece ao trazer como tema e estética a pedra e o sol nordestino. “García Lorca cantava na sua poesia o bonito – seus versos já nascem com o belo. Cabral queria o contrário disso, queria cantar o ovo da galinha em sua ‘arquitetura hermética’. Ele procurava o difícil, o avesso”, resume Marcus. “Cabral é muito lido, mas, às vezes, é mal compreendido. Ele não é um autor épico, a sua narração nem sempre narra muito. Sua poesia é, por excelência, a poesia de um anti-lírico.”

No convívio, o poeta e advogado também colecionou histórias sobre o autor de Cão Sem Plumas. “Um dia Cabral havia bebido aqui no Recife e fui deixá-lo em casa. Ele confessou: ‘Nunca conquistei nenhuma mulher com minha poesia’. Eu respondi: ‘Pois eu, João, sempre conquistei mulheres com a minha poesia – e com a sua também’”, lembra o amigo.

O professor da UFPE Lourival Holanda vai destacar no evento a poesia de João Cabral como um “elogio da concisão”. “Cabral trabalha a palavra como moeda preciosa, o sucinto como um valor em si. Ele não quer evitar o sentimento, mas o derramamento. Ele é como Manolete: o mais asceta”, comenta o pesquisador.

A poesia cabralina, para ele, é esse exercício da contenção, como se funcionasse como uma represa. Ao falar da concisão do poeta, a ideia de Lourival é lembrar como o escrever pouco, domando as palavras, é um valor ético também. “A brevidade e a concisão já foram muito comuns no mundo antigo. Com o Twitter, a tecnologia está levando uma volta à necessidade da concisão. João Cabral já tem essa intuição no regime seco da sua poesia, que tira tudo o que não é essencial”, explica.

O professor lembra também que, por sua força, a poesia de Cabral chegou a se tornar em alguns autores uma influência danosa. “Em certo momento, as pessoas passaram a ler Cabral como a definição da poesia, e não como uma definição de poesia. A imitação e a cópia são a pior homenagem que se pode fazer a alguém. Acho que o mais importante a se guardar de Cabral é uma certa ética da forma”, defende.

Outro convidado do evento, Raimundo Carrero, vai comentar o papel da narrativa na poesia cabralina. Autor de prosa e mais acostumado a comentar romancistas e contista, ele identifica a influência do formato de folhetos de cordel na construção de históricas como Morte e Vida Severina. “Ele é um poeta narrador. Morte e Vida é uma espécie de folheto de cordel erudito, despido da emoção e do romantismo”, explica.

Carrero defende também que, para autores de prosa, Cabral também deve ser visto como um nome essencial. “A palavra nele é exata e perfeita. É o que Flaubert dizia: deve-se evitar o lugar comum e ter uma originalidade permanente em cada frase. Existem dois poetas fundamentais para aprender a escrever: ele e Manuel Bandeira, ambos narrativos”, conclui.

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