NOBEL

Imre Kertész e o retrato crítico do horror

O autor húngaro, falecido na quinta (31/3), soube revelar o cotidiano e o terror do nazismo

Diogo Guedes Com agências de notícias
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Diogo Guedes
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Publicado em 01/04/2016 às 5:52
AFP
O autor húngaro, falecido na quinta (31/3), soube revelar o cotidiano e o terror do nazismo - FOTO: AFP
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O horror também tem seus momentos de tédio, diz o protagonista de Sem Destino – afinal, “num campo de concentração o tédio era possível, até mesmo em Auschwitz”. Homem que viveu a “amargura estúpida de ser apenas inocente” em um campo de concentração e, a partir das palavras, ganhou o Nobel da Literatura, o escritor húngaro Imre Kertész morreu ontem, em Budapeste, aos 86 anos.

Kertész morreu durante a madrugada, em sua casa em Budapeste, após uma longa batalha contra uma doença, declarou seu editor, Krisztian Nyary. A causa da morte não foi divulgada.

Nascido em 9 de novembro de 1929, Kertész foi o primeiro autor em língua húngara a vencer o Nobel. “Kertész foi um dos escritores húngaros mais influentes do século 20, não apenas por sua obra (...), mas também por seu pensamento e sua visão de mundo. Seguirá sendo uma grande influência na literatura nos próximos anos”, disse Nyary.

Judeu, Kertész sobreviveu aos campos de concentração nazistas de Auschwitz-Birkenau (Polônia) e Buchenwald (Alemanha) durante a Segunda Guerra Mundial. Foi levado até eles em 1944, quando tinha 14 anos. Ao chegar em Buchenwald, mentiu sua idade, dizendo que tinha 16 anos para poder trabalhar e não ser morto na hora.

Depois da libertação, de volta à Hungria, vivenciou o terror stalinista e foi perseguido pelo regime quando trabalhava como jornalista. Sobre a opressão comunista, escreveu o volume História Policial, que faz um retrato da paranoia e violência do aparato repressivo em um país latino-americano fictício – essa foi uma forma de Kertész driblar a censura e conseguir vender a obra para a editora estatal da Hungria em 1977. A máxima do livro sintetiza o autoritarismo: “Primeiro o poder, depois a lei”.

Kertész também foi um jornalista e tradutor importante – trabalhou com o textos de nomes como Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Ludwig Wittgenstein e Elias Canetti. Apesar de ter nascido e vivido por muitos anos em Budapeste, o autor morou por muito tempo em Berlim, onde se dizia melhor acolhido. O Nobel da Literatura, cedido em 2002, viria justamente quando o autor passou a morar no país germânico.

Seu livro mais famoso, Sem Destino (1975), foi reconhecido como uma obra que “traça a frágil experiência do indivíduo contra a bárbara arbitrariedade da história, e defende o pensamento individual contra a submissão ao poder político”, segundo o júri do Nobel. Ali, a narrativa de Kertész mostra até o cotidiano e o tédio dentro do horror de um campo de concentração. Apesar de ter sido criado a partir da experiência pessoal do autor, ele dizia que o jovem protagonista, Köves György, não era uma figura autobiográfica. Em 2005, o livro virou filme na Hungria com o nome de Marcas da Guerra.

Na obra, sua linguagem, apesar de relatar o cenário sádico criado pelos nazistas, não cede ao sentimentalismo ou ao tom moralizante – Kertész dá força ao drama por não encená-lo em excesso. O lado kitsch do filme A Lista de Schindler, por exemplo, foi alvo de críticas por parte do escritor. “Eu considero kitsch qualquer representação do holocausto que é incapaz de entender ou que não deseja entender a conexão orgânica entre a nossa própria forma de vida deformada e a possibilidade do holocausto”, comentou.

Além de Sem Destino, Kertész publicou no Brasil títulos como Liquidação, A Língua Exilada, Kadish: por uma Criança Não Nascida, O Fiasco, Eu, um Outro e A Bandeira Inglesa. Em História Policial, ele tece uma frase que explica o seu projeto quase kafkiano de representar como lidamos com o absurdo e como esquecemos a violência do nosso cotidiano. “Continuo a viver minha vida impossível porque não há absurdo com o qual não seja possível viver com total naturalidade”, escreve.

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