REPORTAGEM

Novo livro de Gay Talese traça perfil de um voyeur obsessivo

Em O Voyeur, editado pela Companhia das Letras, ele conta a história de dono de motel que espionava clientes

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 16/10/2016 às 6:44
Joyce Tenneson/Divulgação
Em O Voyeur, editado pela Companhia das Letras, ele conta a história de dono de motel que espionava clientes - FOTO: Joyce Tenneson/Divulgação
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Talvez poucos jornalistas se aproximem tanto da curiosidade absoluta como Gay Talese – um dos nomes clássicos do que se convencionou em chamar, dependendo do ponto de vista, de jornalismo literário ou de novo jornalismo. Não é por acaso que a primeira de suas matérias reunidas no brilhante Fama e Anonimato, uma série de reportagens sobre curiosidades de Nova York, dignas de um grande observador, se intitula A Jornada de um Serendipitoso (termo que vem serendipidade, referência a quem aprecia descobertas casuais).

A curiosidade, com método e uma disposição invejável, fez Talese abordar de forma inédita temas envolventes. Se ele precisava escrever sobre Frank Sinatra e o cantor não queria falar com a imprensa por estar resfriado, o caso era simplesmente o de bater pernas, conversar com muitos que conheceram e, assim, criar um perfil atemporal de uma das maiores estrelas americanas. Se o assunto era a revolução sexual dos anos 1970 nos Estados Unidos, a apuração poderia envolver trabalhar como um gerente numa casa de massagens e viver em colônias nudistas.

Seu mais recente livro, O Voyeur, lançado em julho nos Estados Unidos e editado agora no Brasil pela Companhia das Letras, trata de um personagem igualmente fascinante: Gerald Foos, o dono de um motel em Denver, no Colorado, Estado Unidos. Só o cotidiano do espaço já seria um tema fascinante, mas o empresário o usou com, digamos, certa singularidade. Por meio de brechas no teto, exaustivamente manipuladas até parecerem entradas de ventilação comuns, ele espionou centenas de pessoas – homens e mulheres sozinhos, casais, grupos. Tudo isso para satisfazer seu desejo, nascido na infância, de observar “tanto social quanto sexualmente” os outros.

Talese começa o volume relatando como a história chegou até ele. Quando começava a divulgar na imprensa, em 1980, o livro A Mulher do Próximo, sobre as recentes mudanças de hábitos sexuais dos americanos, recebeu uma carta sem identificação. O remetente se vangloriava de ter espionado, sem nunca ter sido descoberto, os clientes do seu motel ao longo de 15 anos (e continuou o hábito depois disso). “Fiz isso puramente por minha curiosidade ilimitada sobre as pessoas, e não como apenas um voyeur insano”, justifica o empresário na apresentação – diversas vezes ele repetirá a racionalização de que atendia a um bem comum, o de observar com discrição a vida íntima das pessoas para fazer um retrato disso. No texto, Gerald se oferecia para contar suas história, mostrar suas anotações e apresentar o motel ao jornalista sob uma condição: que Talese não revelasse sua fonte.

A restrição, o repórter conta, era um impeditivo inegociável. Talese não poderia basear todo o livro em uma pessoa que não quer se identificar, e Gerald (obviamente) temia consequências judiciais. Ainda assim, talvez por sua curiosidade quase voyeurística, o jornalista para em Denver em uma de suas viagens para conhecer o dono do motel e sua esposa, Donna, que conhecia e apoiava as observações do marido. Até aceita engatinhar pelo teto do espaço com Gerald e acompanha uma mulher fazendo sexo oral em um homem. “O que eu estava fazendo aqui, afinal? Eu me tornara cúmplice de seu estranho e repugnante projeto?”, questiona-se o autor.

DILEMA ÉTICO

Foram décadas recebendo cartas de Gerald. Ao longo do livro, Talese se pergunta diversas vezes sobre o quão além do ético Gerald está, e o quanto o seu próprio ofício tem dessa obsessão voyeurística. Cita até um trecho do seu livro, O Reino e o Poder, de 1969: “Em sua maioria, os jornalistas são incansáveis voyeurs que veem os defeitos do mundo, as imperfeições das pessoas e dos lugares”. E acrescentou: “Mas as pessoas que observei e sobre as quais escrevi haviam dado o seu consentimento”.

As anotações de Gerald são uma espécie de método, e ele também evoca um interesse comum no que faz – Talese lembra do livro Minha Vida Secreta, feito por um homem desconhecido da Inglaterra Vitoriana, que relatou nas suas aventuras os hábitos sexuais e higiênicos que não ficariam registrados em outros relatos e romances da época. “Os hóspedes têm direito à privacidade e jamais devem saber que ela foi invadida”, diz o dono do motel, como se alegasse que, pela vítimas não se reconhecerem como tal, o delito sumisse.

Boa parte do livro traz um resumo do que Gerald viu silenciosamente do teto do seu motel. Dos anos 1960 para os 1970, ele mesmo registra o crescente interesse dos americanos por novas experiências sexuais – aumentam, por exemplo, o número de casais de raças diferentes que passaram pelos seus quartos. Com seu olhar de voyeur científico, ele observou casais heterossexuais e homossexuais (tanto de homens como de mulheres). Comenta troca de casais, fetiches singulares, agressões e até um assassinato (que, naturalmente, é um dos grandes temas da obra). Viu também, antes de tudo, o “inferno de infelicidade” da vida privada das pessoas que observou. Passou incontáveis horas vendo pessoas simplesmente verem TV sem se olharem. Em certa medida, para ele, o voyeurismo era uma “adivinhação previsível”: algo que ele precisava fazer, mesmo que raramente trouxesse dados novos.

Como o livro se sustenta, em grande parte, pelos relatos escritos de Gerald, há menos Talese – e a agudeza do seu olhar, o seu texto, a sua capacidade de, numa descrição ou numa fala, sintetizar alguém – do que se gostaria. O dono do motel tem um estilo de escrita que busca ser impessoal e chega fazer referências a si mesmo na terceira pessoa. Quando fala, é um personagem menos interessante que a sua obsessão patológica por observar os outros. Suas análises sobre a sociedade americana e a sexualidade são também bastante banais.

É mais pelas pontuais reflexões sobre o ofício de jornalismo e sobre a natureza do voyeur que o volume vale a pena. Talese mergulha na grande história, mas com menos recursos para se aproximar dela do que em outros casos. Ainda assim, é uma bela reportagem feita por um voyeur – com padrões e ética, claro – de um voyeur.

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