Seria possível descrever O Marechal de Costas (Alfaguara), o novo romance do escritor José Luiz Passos, como uma narrativa da vida de Floriano Peixoto. É possível tomá-lo como a história de como a vida do ex-presidente se conecta com a de uma possível bisneta nos tempos atuais, uma cozinheira no Brasil das manifestações de 2013 e do impeachment de Dilma Rousseff. Pela temática, poderia ser também um romance político, um ensaio disfarçado com maestria de ficção.
Existe tudo isso na nova obra de José Luiz, mas ela é feita de um material ainda mais sutil: é composta da singela impressão de que a história não só tem elementos que se repetem, mas que se transformam através da relação entre passado e presente. Não é um tema gratuito, afinal, o romance anterior do autor pernambucano, O Sonâmbulo Amador, trata sonhos e memória como parte de um processo de novo entendimento de si mesmo. Aqui, a memória tem sua dimensão coletiva e íntima, a História, como uma espécie de personagem oculto. (Veja entrevista sobre o livro).
Como o título sugere, a obra aborda a vida de Floriano, um personagem desde o início fascinante para José Luiz em sua obsessão por Napoleão, em seu jeito calado, no amor pela meia-irmã, na sua solidão turrona e quase poética e no fato, por exemplo, de ter tido mais votos do que Deodoro na eleição indireta para a vice-presidência. Mas os dados biográficos não são suficientes para sustentar uma narrativa: afinal, diz um trecho do livro, “toda biografia é como adivinhar pelas costas o rosto de alguém”.
Ao mesmo tempo, uma cozinheira narra, em primeira pessoa, cenas políticas dos tempos atuais: os protestos pela diminuição da passagem em 2013, os discursos de Dilma Rousseff. Em um jantar, um professor falastrão conversa com seus patrões e, também, com ela, cheio de condescendência e encantado com a possibilidade de estar diante de uma bisneta de Floriano. O que ele vai dizendo, com uma falsa modéstia que lembra a pior das petulâncias, são fragmentos das muitas teorias – furadas ou não – sobre a razão da nossa crise política.
À BALA
O incrível no romance é que José Luiz consegue abordar a república brasileira através desses dois recortes sem ser taxativo ou irresponsável. Seu personagem, não por acaso, é o vice-presidente que terminou assumido o posto (mesmo que a lei o obrigasse a convocar novas eleições) e governou o Brasil “à bala”. “Quem quer que seja vice, aspira ser Floriano”, diz o personagem do professor, como um recado ao presente.
Sem conclusões óbvias ou partidarismo, o autor pernambucano cria um romance sobre a política ainda mais impressionante por ir além dela. Sua prosa, mais fluida, ainda que com a mesma qualidade de O Sonâmbulo Amador, sugere que “a gênese do passado está no presente, não o contrário”, citando Rousseau. Não é um romance de respostas, mas a sensação é que vivemos ainda num País, como pensa a cozinheira, que ainda apunhala seus cidadãos e esperanças.