HISTÓRIA

O imaginário dos cartazes e quadrinhos de Maio de 1968

Livro traz manifestos, textos e imagens sobre a icônica revolta que parou Paris e o mundo

JC Online
Cadastrado por
JC Online
Publicado em 10/06/2018 às 8:21
Reprodução
Livro traz manifestos, textos e imagens sobre a icônica revolta que parou Paris e o mundo - FOTO: Reprodução
Leitura:

Foi em uma semana como a que passou, há 50 anos, que a França começou a voltar a sua “normalidade”. A greve de estudantes e trabalhadores de maio de 1968 havia paralisado o país não só pela recusa ao trabalho e pelo fechamento de ruas e fábricas: de certa forma, Paris e boa parte do mundo assistiam boquiabertos o surgimento e crescimento de um movimento como poucos na história – radical, criativo, democrático e, talvez por tudo isso, ainda hoje difícil de definir e compreender.

Maio de 1968 aconteceu em uma França com um estado de relativo bem-estar e um herói de guerra, o general De Gaulle, no governo. O contexto mostra que se tratava de um movimento complexo, sem uma liderança definida (ainda que com um porta-voz famoso, o estudante Daniel Cohn-Bendit), que recusava inclusive o status-quo da esquerda da época, formada por social-democratas, stalinistas e até trotskistas. Quem viveu o período, dentro do movimento ou fora dele, fala do Maio de 1968 como um momento de suspensão do cotidiano, de espontaneidade incontrolável. Suas demandas eram impossíveis porque todos acreditavam que o único realismo possível era querer outro mundo.

No processo sempre aberto de tentar compreender o que de fato foi o movimento, a editora Veneta lança agora o livro 68: Como Incendiar um País, com organização de Maria Teresa Mhereb e Erick Corrêa, dentro da coleção Baderna. A obra traz os manifestos, quadrinhos, palavras de ordem, pôsteres e músicas do período, numa espécie de historiografia dos sonhos dos que fizeram a França parar.

DESCOLONIZAÇÃO DA VIDA COTIDIANA

O livro mostra Maio de 1968 como uma tentativa de “descolonização total de vida cotidiana”. Se o trabalho, na visão marxista, é um elemento alienante, que separa os trabalhadores do que eles mesmos produzem, para os situacionistas, grupo que tinha o filósofo Guy Debord entre os seus integrantes, a alienação tinha ocupado quase todos os aspectos da vida de então. O lazer, a educação e a arte não ajudavam ninguém a ver o mundo além do imediato, mantendo as injustiças sociais e discrepâncias.

As inúmeras frases de efeito do movimento – a maioria anônima – revelavam isso. 68: Como Incendiar um País mostra várias delas: “Viver sem tempo morto. Gozar sem entraves”; “Sob os paralelepípedos, a praia”; “Contra toda sobrevivência da arte, contra o reinado da separação”; e “Só a verdade é revolucionária”. Algumas são especialmente sintomáticas ao revelar que se queria uma mudança qualitativa, e não quantitativa: “Não se trata de reivindicar mais disso ou daquilo. Trata-se de reivindicar outra coisa”.

Segundo Maria Teresa Mhereb, a produção gráfica do período foi ampla e nada homogênea. Operários de gráficas utilizavam o maquinário das fábricas ocupadas para imprimir tiragem de até 200 mil panfletos e HQs. Os quadrinhos eram feitos de forma singular: tirinhas e páginas criadas com fins didáticos por patrões e governo ganhavam novas palavras. Mhereb chama isso de “método do desvio (détournement), que, já presente nos ready-mades de Marcel Duchamp, ganhou definição como tal e alcance político com os situacionistas”.

O resultado incendiário foi uma greve que chegou a unir 11 milhões de trabalhadores e estudantes, parando a França por quase um mês completo. De Gaulle reprimiu violentamente as manifestações, esperou o arrefecimento dos movimentos, negociou com a esquerda partidária e os sindicatos na surdina e convocou ele mesmo o povo às ruas para defendê-lo. Nas eleições seguintes, ampliou sua maioria, mas renunciaria ao governo francês em 1969.

Nas décadas seguintes, o significado de Maio de 1968 foi disputado por diversas visões, inclusive dentro da esquerda. Claude Lefort, do grupo Socialismo ou Barbárie, dizia que foi uma “revolta bem sucedida”. O seu colega de grupo, Cornelius Castoriadis, afirmava o oposto: era uma “revolução fracassada”. A melhor definição é a dos filósofos francês Gilles Deleuze e Félix Guattari: Maio de 1968 não aconteceu, “pois, se a luta não começa nas barricadas dos dias 10 e 11 de maio, tampouco ela termina nas trincheiras com as eleições de 23 e 30 de junho, mas se desenvolve posteriormente também nas trincheiras do campo simbólico, ou seja, nas disputas ideológicas pela memória do evento”.

Como o belíssimo documentário No Intenso Agora, de João Moreira Salles, Erick Corrêa, que assina a apresentação do livro, vê Maio de 1968 como um evento essencial de ser observado pelo presente, ainda mais no Brasil. “De um ponto de vista contemporâneo, nos parece que a crise francesa de maio-junho de 1968 apresenta ao leitor brasileiro de 2018 lições mais próximas de sua realidade do que a crise propriamente brasileira daquele ano”, escreve.

As manifestações no Brasil em 1968 naturalmente se ativeram a realidade de então, a ditadura militar. O contexto da França era de uma democracia como farsa, incapaz de solucionar a própria insatisfação que gerava – Maio de 1968 era um pleito, para ele, por uma democracia real, que abalasse as estruturas do capitalismo. “O que nos conecta ao 1968 francês é precisamente o fato de que, a partir daquelas jornadas, isto é, na reação a elas, a distinção clássica entre Estado de Direito e Estado de Exceção como antíteses inconciliáveis passa a perder o seu sentido histórico”, conclui.

Últimas notícias