QUADRINHOS

'Fun Home', HQ icônica de Alison Bechdel, volta às livrarias

A história em quadrinhos mostra a relação da autora com seu pai, um homem controlador e frio

Diogo Guedes
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Diogo Guedes
Publicado em 11/09/2018 às 7:46
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A história em quadrinhos mostra a relação da autora com seu pai, um homem controlador e frio - FOTO: Divulgação
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As memórias costumam existir como espécie de certezas (ainda que sejam quase sempre ilusão): isso aconteceu antes daquilo, algo é consequência de outra coisa, alguém é de tal jeito porque viveu uma série de experiências. Assim, na sua superfície, e só nela, as lembranças podem parecer fatos pacificados, resolvidos. O passado, no entanto, tende a ser mais persistente e incômodo justamente no que as pessoas são incapazes de resolver por si sós: nas dúvidas que permanecem, nos traumas a serem esquecidos e ainda nas lacunas impossíveis de se completar.

Mais de 10 anos depois do seu lançamento, a HQ Fun Home – Uma Tragicomédia em Família (Todavia, tradução de André Conti), da quadrinista americana Alison Bechdel, continua como uma ilustração primorosa desse conflito do humano com a memória. O livro poderia chamar atenção pelo seu conteúdo: Alison, uma quadrinista lésbica, tenta falar do seu pai, um homem controlador e distante que morreu atropelado por um caminhão enquanto reformava uma casa – ela suspeita que ele se escolheu se jogar na frente do veículo. No entanto, mais do que a história narrada, é o jogo sincero entre envolvimento pessoal e sobriedade que a sustentam.

Espécie de clássico instantâneo da graphic novels, Fun Home foi publicada originalmente nos Estados Unidos em 2006, no começo de um turbilhão que geraria uma série de narrativas em quadrinhos autobiográficas. No ano seguinte, foi lançada no Brasil pela Conrad. A edição da Todavia, apesar de não ter nenhum novidade, corrige a injustiça da obra ter estado fora de catálogo por algum tempo.

REEDIÇÃO

Voltar a Fun Home agora é reconhecer que, se as graphic novels se libertaram da moda das autobiografias lamuriosas, algumas resistem ao tempo tão potentes quanto eram. O título da obra faz referência à casa da família Bechdel: Fun Home (Casa da Diversão, em uma das traduções possíveis) é uma abreviação da Funeral Home (Casa Funerária) – já daí vem a ideia tragicômica do título.

Apesar disso, o livro é mais taciturno do que bem-humorado. Alison é a mais velha de três irmãos, vivendo em uma casa que parece mais um museu da decoração e arquitetura de séculos passados. Seu pai, Bruce, conserta e aperfeiçoa obsessivamente essa antiga mansão. “Às vezes, quando as coisas iam bem, acho que ele até gostava de ter uma família. Ou pelo menos do ar de autenticidade que dávamos à sua obra de arte. Uma natureza-morta com crianças”, descreve a autora.

Enquanto observa seu passado, Alison vai dando pistas das razões profundas do comportamento do pai. Bruce se preocupa tanto com as aparências porque são o que ele pode controlar da sua vida. Semanas antes da sua morte misteriosa, Alison revelou a ele e sua mãe por meio de uma carta que era lésbica. Após sair do armário, descobriu também que seu pai havia tido vários relacionamentos com homens.

A arte de Alison parece simples, dispensa o uso de cores e permite um amplo espaço para a escrita dela – Fun Home é umas das HQs mais “literárias” por conta do texto primoroso e do diálogo, sem cair no pedantismo, com a literatura. Como um retrato do cotidiano reprimido da casa, os personagens estão quase sempre sérios, concentrados em si mesmos.

Alison, criadora também das icônicas tirinhas feministas e lésbicas Dykes to Watch Out For e de outra narrativa autobiográfica, Você É Minha Mãe?, nunca recai em um simples jogo de culpa e trauma. Seu retorno ao passado é antes de tudo uma busca por entender – a si e ao pai. “Meus pais são mais reais para mim em termos de ficção. E talvez meu distanciamento estético transmita melhor o clima ártico de minha família do que qualquer comparação literária”, pondera em determinado momento. Fun Home é poderoso porque é sincero: sabe que o passado é inalcançável e que ainda assim é preciso tentar capturá-lo.

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