Coco

A felicidade guerreira de Beth de Oxum

Yalorixá, percussionista e militante, a cantora comemora 15 anos de sua roda de coco

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 01/06/2013 às 8:00
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    Para Beth de Oxum, não há distinção entre festa e militância. Ialorixá, percussionista, cantora e tantos outros adjetivos que nela se justapõem, a mais frequente embaixadora das culturas de matriz africana em Olinda sabe perfeitamente que a felicidade do negro, como cantava Gil, “é uma felicidade guerreira”. “Os tambores reafirmam nossa identidade”, diz a diretora do Ponto de Cultura Coco de Umbigada, que, neste sábado, tem motivo especial para encampar sua sambada afirmativa. No terreiro olindense onde vive e trabalha, ela comemora 15 anos desde que assumiu o coco que fez de Guadalupe um bairro com status de embaixada do ritmo.
    Olindense, parida na antiga e extinta Maternidade do Carmo, Beth de Oxum nasceu Maria Elizabeth Santiago de Oliveira há 50 anos. Mas não herdou o coco, como é usual, dos pais biológicos. “O coco vem da família do meu marido, que era feito na Aldeia de Paratibe, em Paulista, há mais de cem anos. Esse coco vem de lá, de uma rua em que todo mundo era parente. Com o falecimento dos pais dele, o coco ficou mais de 40 anos parado”, diz a esposa do músico e parceiro Quinho Caetés, com quem tem cinco filhos. Oxaguiam, 17; Ialodê, 15; Mayra Karê, 14; Heloise Nêga, 13, e até Inaiê, com 5, nascida quando Beth já tinha 45 anos, participam e ajudam nas sambadas.
    “Quinho queria voltar com o coco, mas não tinha forças sozinho. Aí, eu disse: ‘Vamos fazer’. A zabumba de macaíba que usamos tem mais de cem anos. Foi recuperada por nós”, diz Beth. Seu coco ajudou a aumentar a frequência das outras rodas em Olinda. “Com a quantidade de gente, o coco bombou e incentivou os outros”, diz. O coco do pneu, do Amaro Branco, por exemplo, só fazia suas rodas no ciclo junino. Agora, faz uma roda mensal, todo último sábado do mês. As rodas de Beth acontecem no começo da noite de todo primeiro sábado mensal.
    Multi-instrumentista, Beth já viajou boa parte do mundo ocidental para participar de encontros de lideranças comunitárias ou dar oficinas de percussão, com congas, abês e alfaias. “Toco os instrumentos para frevo, ciranda, afoxé, cavalo-marinho, esse universo todo da cultura popular”, diz ela, que, mesmo ex-aluna de canto e solfejo do antigo Centro de Ensino Musical de Olinda, teve sua grande escola de formação nos terreiros de Olinda. “Minha mãe não era do candomblé. Mas minha irmã mais velha já era. Sempre morei perto de candomblés, minha casa passou a ser um terreiro comigo”, diz ela, ex-assídua nos terreiros de Ivanildo de Oxóssi, Genivaldo de Oxum, no Barro, e Mãe Lúcia de Oyá, no Janga. Além disso, tem seu habitat como parte da formação. “Minha grande escola é o terreiro”.
    A filha de Oxum tem uma larga folha de serviços prestados para a inclusão e ampliação do papel da mulher nas manifestações de cultura de matriz africana em Pernambuco. Sim, feminista é outro aposto que lhe cai bem. Por sete anos, Beth foi presidente do Afoxé Filhos de Oxum, tido como pioneiro em incluir mulheres na percussão. Também foi presidente, durante 15 anos, do Afoxé Alafin Oyó – quando, mais do que hoje, os afoxés serviam não só para fazer o povo dançar o ijexá nas ruas, mas para mobilizar seus membros contra a intolerância religiosa.
    Intolerância, aliás, que não acabou. Não faz muito tempo, Beth teve problemas com vizinhos, auto-declarados evangélicos. Moradores que não hesitavam acionar a polícia mal os tambores e zabumbas de Beth de Oxum começassem a tocar. “Mas passou, estamos em boa convivência. Eles queriam impedir o coco. Teve um dia que quiseram me prender”, lembra ela, que contou até com a interferência do então ministro da cultura Gilberto Gil para dissolver a pequena guerra religiosa em Guadalupe. “Hoje, a gente tem que tocar até meia-noite. E o direito da religiosidade, da festa, do tambor, onde fica?”, pergunta a filha de Oxum que, há cinco anos, se consagrou sacerdotisa do candomblé e já tem quinze filhos de santo feitos por ela.
    Vestidos ou batas de estampas africanas, cabelos longos de um rastafári cuidadosamente cultivado, Beth de Oxum não hesita em alterar a voz, como se falasse para uma comunidade, toda vez que algum assunto espinhoso se lhe apresenta. “Os neopentecostais ainda perseguem. Feliciano representa bem o que a bancada evangélica pretende com seu projeto fascista. O Brasil é o único País do mundo que tem bancada evangélica. Como é que o Estado pode ser laico e ter uma bancada evangélica?”, questiona, deixando claro, contudo, que não tem oposições com a fé alheia.
    Só não admite que a fé dos outros seja instrumentalizada politicamente para censurar sua própria religiosidade ou cultura. “A bancada evangélica, por exemplo, proibiu nas escolas o kit educativo contra a homofobia. Não dá: eles encampam um processo político perigoso e fundamentalista”, diz ela, articulada e articuladora. Entra onde lhe cabe. É membro dos conselhos nacionais e municipais de política cultural.
    Desde segunda, Beth está numa espécie de turnê política. Viajou para o Encontro Nacional da Rede Quilombola, em Campinas. “Fui falar sobre a experiência da gente em Olinda. Falar da nossa rede, o telecentro que mantemos em parceria com o Serpro”, diz ela, sobre o espaço em que oferece oficinas de tecnologia para a comunidade. Ou sobre sua experiência com comunicação popular. Em Guadalupe, ela coordena a rádio Amnsésia (FM 89,5). “Essa rádio, a gente tem porque entende a comunicação como direito. Se, com algumas exceções, as rádios de Pernambuco não tocam a música local, a gente tem que criar uma rádio e garantir nosso direito”, diz. Na programação, entram frevo, hip hop, candomblé e infantis de conteúdo afro.
    A política dos pontos de cultura é umas das heranças sólidas da era Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura que, para Beth, viabiliza e estimula a política cultural popular. “Foi uma política que ‘desescondeu’ esse País. Acho que é o programa de redes nacionais mais importante depois dos centros de cultura popular. Para articular em rede, é importante saber usar as novas tecnologias”. Multimídia, Beth desenvolve jogos no universo na cultura afro-brasileira (3ecologias.net/contosdeifa) e ainda tem fôlego para manter, no YouTube, a TV Coco de Umbigada.
    A quantidade de moradores, visitantes e estrangeiros – com cara de quem acaba de desembarcar com uma versão do guia Lonely Planet na mão – nas rodas mensais do coco de Beth de Oxum não deixam dúvidas de que ela está mais do que incorporada à geografia cultural de Olinda. Mas ela ainda se queixa de pouco apoio institucional. “No último Carnaval, teve pouquíssimos grupos de coco na programação oficial. Até hoje, Olinda não definiu sua programação junina”, reclama. “A gente bota a cultura na rua na marra”, diz. Com um olho na festa e outro na luta, Beth, hoje, bota sua felicidade guerreira para sambar no Beco da Macaíba.
15 anos do Coco da Umbigada. Beco da Macaíba, s/n. Guadalupe. A partir de 20h

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