No final do século 19 – mais precisamente no ano de 1897 –, o psicanalista austríaco Sigmund Freud escrevia, em uma carta ao seu colega Wilhelm Fliess, uma teoria que viria a se transformar no Complexo de Édipo. Todo filho deveria, para Freud, “matar o pai”. Assim, cada um poderia assumir sua individualidade e trilhar seu próprio caminho. Poucos anos depois da troca de ideias entre os dois médicos, a música clássica que até então reinava seria assassinada pelo próprio filho: o eruditismo contemporâneo.
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Matar não significa anular por inteiro as características anteriores, mas sim inovar e libertar-se. Foi assim, matando simbolicamente (e também em aspectos práticos) a figura paterna das formas tonais, harmônicas e melódicas que prevaleciam na música erudita que os compositores modernos romperam com a linguagem consagrada por nomes como Bach, Mozart e Beethoven.
A música erudita abriu uma porta para formas mais experimentais de compor e interpretar. Claude Debussy, Maurice Ravel, Igor Stravinski, Luigo Russolo e Arnold Schönberg foram alguns dos compositores mais importantes do início do século passado e que encabeçaram o movimento de mudança na música clássica.
“O século 20 foi uma época difícil. A Europa passou por duas guerras e a constante valorização das máquinas. E isso se refletiu também nas artes. No caso da música erudita – ou de concerto como eu prefiro chamar –, os compositores começaram a aventurar-se em formas atonais, ruídos e intervenções de música eletrônica”, explica o pianista e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Marcílio Onofre.
As formas não convencionais e mais experimentais da vertente atual da música erudita contemporânea, liderada por nomes como os de John Cage, Phillip Glass e Almeida Prado, entre os mais conhecidos mundialmente, pode bem ser definida parafraseando Fausto, de Goethe: “prestes me sinto a penetrar a altura, a entranhar-me em órbitas etéreas, novas regiões de atividade pura.” O trecho é lembrado pelo crítico musical Alex Ross em sua obra O resto é ruído.
Compositores que marcaram a segunda metade do século 20 (Glass, Cage e outros) abriram os caminhos para formas ainda mais ousadas e estranhas aos ouvidos na primeira escuta. Nomes como os do franco-italiano Steffano Gervasoni e dos pernambucanos Armando Lobo Neto e Alípio Carvalho Neto.
Armando acredita que a maior característica da música erudita contemporânea é encarar o som como uma unidade inteira de sentido. “Às vezes nem precisa de melodia ou harmonia”, diz. Gervasoni esteve no Recife durante a última semana de novembro para participar da segunda edição do festival Virtuosi Século XXI. Na ocasião, ele ministrou uma oficina de composição, onde comentou sobre a percepção de perda de identidade dos instrumentos em suas composições. Isto é, distorção dos sons que leva um musicista extrapolar o rol de sonoridades convencionais disponíveis em seu instrumentos.
Para Alípio, é arriscado definir se o grau de ousadia dos atuais compositores é maior que os do século 20 por ainda experimentarmos uma elaboração e reelaboração do século passado. “Ainda estamos no início daquilo que realmente será, creio eu, uma síntese entre música erudita, eletrônica-tecnologia avançada e tradições populares com uma tendência ao reencontro com o telúrico, com o transe, etc., de forma mais profunda”, analisa. O eruditismo contemporâneo matou seus pais simbólicos, mas ainda está em pleno processo de aprendizagem e amadurecimento.
Leia matéria na íntegra na ediçao deste domingo (15) no Caderno C, do Jornal do Commercio