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O mangue beat tecido por muitos

Artistas que conviveram com Chico Science, antes e durante sua ascensão, relatam a evolução da rede musical que tomou o Brasil

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 04/02/2016 às 7:07
Foto: Alexandre Belém/ Acervo JC Imagem
CHICO SCIENCE TEM ANIVERSÁRIO LEMBRADO EM FESTA NO PÁTIO DE SÃO PEDRO - FOTO: Foto: Alexandre Belém/ Acervo JC Imagem
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Em 1994, o release-manifesto Caranguejos Com Cérebro definia os mangueboys e manguegirls como “indivíduos interessados em quadrinhos, tv interativa, anti-psiquiatria, Bezerra da Silva, Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua, John Coltrane” e etc. Sendo um desses indivíduos, Chico Science manteve sempre suas antenas sintonizadas com as mais diversas influências artísticas.

“Ele era um cara muito curioso, estava sempre a fim de conhecer coisas novas. Tinha um gosto muito apurado e olhava para vários estilos”, diz a cantora e jornalista Stella Campos. A paulista conheceu Chico no Aeroanta, na ocasião do primeiro show da Nação Zumbi em São Paulo. Depois ela veio ao Recife, onde morou por seis anos, viu surgir e interagiu com o mangue integrando as bandas Lara Hanouska e, com ex-integrantes da banda Fellini, o Funziona Sensa Vapore.  “Chico e o pessoal da Nação eram fãs do Fellini. Em 1994, chegamos a fazer um show juntos tocando só músicas do Fellini e do Funziona. Depois ele regravou uma de nossas músicas, Criança de Domingo”, comenta. 

Stella recorda dos discos de Chico: “Lembro que ele gostava bastante do Kraftwerk. Eu ia à casa dele, e ele também ficava botando direto aquele disco Forever Changes, do Love”. Quem ouve as batidas pesadas da Nação nem imagina que Chico se identificava com o pop orquestral da banda de Arthur Lee. Mas Renato L., jornalista que ajudou a conceber o mangue, destaca: “Até a Nação dar uma decolada profissionalmente, Chico tinha duas bandas: Nação e Loustal, que era uma formação clássica de rock e tinha um repertório muito em cima de pop rock dos anos 60. Faziam até cover de Taxman, dos Beatles”.

Hoje o movimento mangue é frequentemente comparado à cena grunge de Seattle, nos Estados Unidos. No entanto, Renato esclarece: “acho que a comparação com Seattle é mais no sentido do impacto de uma movimentação cultural. Mas esteticamente falando, a gente não tinha afinidade nenhuma com o grunge. O que interessava para gente era a cena de Manchester, que ficou conhecida como ‘Madchester’, que fazia uma fusão do rock indie com música eletrônica. Havia interesse pelo som daquelas bandas, como Stone Roses, e também pelo que a gente lia em jornais e revistas sobre a acid house, a cultura das raves”. E sublinha: “O grunge não disse nada pra gente. O Nevermind, na época, pra esse núcleo base do mangue beat, passou batido. A gente achava muito mais legal o Primal Scream com o Screamadelica, lançado também em 1991”.

Naquele tempo pré-internet, a informação e o acesso às novidades musicais no Brasil ainda eram escassas. “Um exemplar da Wired e do New Musical Express (revistas internacionais de música) era disputado à tapa. De maneira quase heroica, meu irmão sintonizava e gravava em cassete o programa de John Peel, na BBC. Conseguimos passar o reveillon de 90 pra 91 ouvindo Happy Mondays e 808 State. A gente ia nos sebos de disco e nesse ecossistema todo, sempre rolava muita troca. Era comum".

As influências também iam além da esfera musical. “Eu lembro que mostrei pra ele e pra Duda, a namorada dele na época, o livro Aos Teus Pés, com poesias da Ana Cristina César, e ele adorou”, diz Stella. O livro Geografia da Fome, de Josué de Castro (autor amencionado na letra de Banditismo Por Uma Questão de Classe), foi apresentado a Chico por José Teles, jornalista deste Jornal do Commercio, e também marcou o pensamento do músico. “Aquele era quase o livro de cabeceira de Chico. Mas mesmo antes de ler ele já se aproximava das ideias de Josué. Na época ele já havia escrito A Cidade, por exemplo”, comenta Renato. 

Fred Zero Quatro, da Mundo Livre S/A e o músico e designer H.D. Mabuse dividiram um apartamento no Edifício Capibaribe, na Rua da Aurora, no começo dos anos 1990. Amigo e parceiro na banda Bom Tom Radio (que flertava com rap e música eletrônica), Mabuse acompanhou o mangueboy numa palestra do matemático francês Benoît Mandelbrot, criador da geometria fractal. Havia um interesse grande nas ideias avançadas da ciência e tecnologia. “Deixei no apartamento uma edição da Wired sobre Teoria do Caos. Chico pegou aquilo e em uma semana o Da Lama Ao Caos tava escrito! Ele tinha uma facilidade de pegar esses temas complexos e transpor para um formato pop, que pudesse ser melhor assimilado”, analisa Mabuse. “Aquilo era quase como uma atualização do psicodelismo. Mabuse e Helder (DJ Dolores) faziam os cartazes dos shows com fractais e tudo isso”, relembra Renato.

“Renato L. era um agregado lá do apartamento”, lembra Zero Quatro. “A gente fazia audições coletivas, se reunia pra organizar o conceito das nossas festas no Centro, os setlists. Era um grande painel pop, tinha de samba de Bezerra da Silva e passava por R&B, jazz, hip hop... Tudo que você não tinha muita chance de ouvir no Recife porque as casas noturnas da cidade eram muito restritas”, diz.

 

Por intermédio de Gilmar Bola 8, Chico conheceu no bairro de Peixinhos, em Olinda, o bloco afro Lamento Negro e o artesão Maureliano, que fazia os tambores de alfaia. Começou a se envolver e tornou-se parte do grupo. “A partir de Chico, o Lamento Negro começou a sair mais da comunidade. A gente acompanhou ele tocando na soparia, no Abril Pro Rock”, diz o percussionista Mestre Maia. “O Lamento Negro foi mãe e pai de várias bandas. De lá saíram Chico Science & Nação Zumbi, Coração Tribal, Etnia, Maracatu Nação Pernambuco, Via Sat e outros”, completa o cantor Pácua. “Chico juntou o pessoal do gueto com o pessoal de Rio Doce. E ele pensava em todos. Da última vez que a gente se falou, ele disse: ‘Pácua, quero fazer um negócio solo só teu; quero fazer o disco do Lamento. Ele pensava no coletivo. Sempre foi assim. Ele sabia que o mangue era todos nós. E só da gente estar vivo e falar que ele é ainda um membro já é uma grande homenagem”, afirma. 

“A ideia do dia de sábado e domingo era: todo mundo pegava os tambores e ia pro Daruê Malungo. Era ouvir música, tocar, bater papo, se divertir. Ali foi uma grande escola pra mim, pra Chico, pra Maia e todo mundo”, avalia Pácua. Toca Ogan, percussionista da Nação e do Lamento, resume: “Pra mim chico tá sempre vivo. Pra mim ele só foi tomar uma gelada ali e daqui a já pouco volta”.

Herdeiro do mangue beat, Fábio Trummer, vocalista da Eddie, fala de Chico como um mestre: “Quando eu o conheci não era nem Science ainda, era Chico Vulgo. Ele tinha uma visão muito clara de uma carreira musical autoral. Já tinha uma busca por uma identidade musical própria e isso tudo me fascinava muito. Eu nem pensava em ser músico, mas essa maturidade, a visão precisa do que ele pretendia fazer me motivava”. 

Ele destaca também a importância das festas naquele circuito musical: “Se fazia muitas festas que conectavam Recife com o que estava acontecendo de mais novo na música do mundo. Se olhava sempre para o futuro, nunca para trás. Chico foi um professor da boa música contemporânea. Me abriu as portas da percepção”, afirma ele, que através do amigo conheceu o primeiro álbum do Public Enemy, a banda paulista Gueto e o livro Flashback, do guru psicodélico Timothy Leary. “Poderia falar de várias outras coisas, mas esses três me marcaram bastante. Sou o caçula dessa geração e tive muita sorte de conviver com eles, conhecer tudo isso”, diz.

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