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Pobre, gay e negro: Rico Dalasam transforma o estigma em orgulho no primeiro disco

"Orgunga" é o primeiro álbum do rapper que quebra a heteronormatividade do gênero no Brasil

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 16/06/2016 às 6:55
Henrique Grandi/Divulgação
"Orgunga" é o primeiro álbum do rapper que quebra a heteronormatividade do gênero no Brasil - FOTO: Henrique Grandi/Divulgação
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Rico Dalasam tem a consciência de que não cabe – nunca coube – na moldura. Morador da cidade periférica de Taboão da Serra, caçula de cinco irmãos, filho de uma cozinheira baiana e de um pai cujo rosto nunca viu, aos 16, bolsista, constatou ser o único negro no colégio de classe média e alta em que estudava. Ao começar a se expressar musicalmente, percebeu também que as angústias e alegrias do pop de franjinhas de seus colegas, dilemas como a próxima festa ou o beijo da garota loira, não refletiam a realidade. Não a sua. Desaguou, então, no rap.


"No pop, a gente vê muita maquiagem. No rap, estava o protesto, a resistência, as minorias. O pop já atende a pessoas que não conhecem o outro lado. Já o rap falava de coisas que eu vivia, eu não precisava ir muito longe pra ver aquilo acontecendo. Por algum motivo, fui me envolvendo com isso”, diz o músico que, aos 25 anos, transforma o estigma em credenciais. Depois do bem aceito EP "Modo Diverso", lançado ano passado, Rico Dalasam lança seu primeiro disco. "Orgunga" é fruto de um ano de música na estrada e da confirmação de seus orgulhos. Num mundo sempre disposto a etiquetar quem chega, Rico é celebrado como o primeiro rapper assumidamente gay do Brasil. "Negros, gays, rappers: quantos no Brasil? Deve haver vários tantos", questiona ele nos versos na autobiográfica Dalasam.


No universo quase sempre heteronormativo – e mesmo machista de garotas exibidas como troféus ao lado de carros dos que estão no topo da pirâmide, ou nos bailes de quem dança na base –, Rico teve que rebolar para politizar a própria sexualidade nas rimas. Sendo gay, não lhe bastava ser negro e periférico para ser aceito como rapper. “Tem rap pra tudo. Escroto, inconsciente e a cultura hip hop tinha muito a ver com o que achavam que nós tínhamos que ser. Os garotos de 15 e 16 anos que não tinham o embasamento da cultura hip hop me criticaram. Mas o gênero, a sexualidade é nossa maneira de ser, né, mano? A gente sabe o quanto há de fundamentalismo de ordem política e no cotidiano”, diz ele, virgulando as frases com o “mano’ que serve de vocativo mais corrente no discurso do rap.


Sua voz grave quase nunca é usada para gírias mais frequentes entre gays jovens como “lacrar” e “bapho”. “É isso, mano, fora do que cada um é, de fato, o lugar da fala é mais difícil de acontecer, essas palavras não fazem parte do meu cotidiano”, diz o garoto que, aos 13 anos, já trabalhava como cabeleireiro e maquiador e, aos 25, armado com cores fortes e roupas pouco usuais, foi apontado pela Vogue América como uma referência de estilo.


Com uma musicalidade pouco ortodoxa, flautas indianas ao lado de batidas eletrônicas, Rico fez acontecer seu lugar de fala em vários ouvidos. Já com o sucesso do hit "Aceite-C", aquele que tomou as pistas com um sample de "O Mais Belo dos Belos", da baiana Daniela Mercury,  foi credenciado por caciques  como Emicida e Mano Brown. “Sua coragem é revolucionária”, disse Daniela. Gilberto Gil também apressou-se em ungi-lo. “Rico é o rapper gay brasileiro que quebra tabus rimando”, disse o tropicalista. Com histórias do cotidiano de chumbo, enfrentamentos raciais e histórias de paqueras e amores entre homens, o disco independente "Orgunga" resume no título a reversão da trajetória. Corruptela de ‘orgulho, gay e negro’ é, como ele diz, um manifesto de afirmação. “Esse disco conta a história dos meus maiores orgulhos. Hoje eu olho com mais grandeza dentro do País em que vivo”, diz ele, vocacionado: “Eu tenho uma missão inevitável. A de desconstruir sempre”.

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