MÚSICA POPULAR

Dor, alegria e fé: novos álbuns sobre a diáspora africana

Artistas contemporâneos reinventam a herança da música negra, que grupos no passado procuravam preservar

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 21/08/2016 às 8:31
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Artistas contemporâneos reinventam a herança da música negra, que grupos no passado procuravam preservar - FOTO: Foto: Reprodução
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"Este ritmo binário, que é o alicerce principal de quase todos os ritmos da canção popular do Brasil, veio importado de longe. Das placas ardentes da África, onde o sol queimou a pele dos homens até carbonizá-la em negro. O compasso, tão simples que reproduz em tom grave as batidas do próprio coração, atravessou o Atlântico sob a bandeira dos navios negreiros, servindo para marcar o andamento de melopeias que vinham dos porões em vozes gemidas e magoadas”, narra o radialista Paulo Roberto sob uma base de atabaques na introdução do LP Obaluyé! (1957), da Orquestra Afro-Brasileira.

Ele segue, explicando a disseminação da música negra e seu desenvolvimento no Brasil: “Quando os negros escravos desembarcavam aqui em magotes, vinham com eles, latejando nos peitos magros e sofridos, as batidas selvagens dos atabaques da terra africana. Mas o homem é um animal que se habitua. O negro africano escravizado teve seus dias de folga, seus dias de festa e também seus amores, que começavam no galanteio das danças. Macho e fêmea escravizados se libertavam no amor. E para festejar essa primavera de emoções, outros instrumentos de percussão entravam em cena iluminando o andamento das cantigas para dança”, relata, enquanto surgem gradualmente outros tambores como o rum, o som metálico do gonguê e do agogô e os chocalhos do ganzá e o afoxé. 

O trabalho do maestro Abigail Moura à frente da Orquestra Afro-Brasileira (veja abaixo) se tornou referência da memória cultural negra. Nas palavras de Paulo Roberto, é um “mergulho no passado das senzalas, trazendo as angústias e alegrias do negro”. Assim como as cicatrizes da escravidão e do racismo ainda estão expostas na sociedade atual, a negritude se mantém como questão central em trabalhos musicais recentes. Porém, enquanto a Abigal dedicou a obra à preservação um legado histórico, os artistas contemporâneos se conectam à diáspora africana não para fazer uma afirmação essencialista da “tradição”, mas sim para reinventá–lá. Sublimar as fronteiras.

Como um agenciamento coletivo, esses trabalhos carregam em comum uma força ancestral, que transcende e nos constitui hoje, ontem, sempre. “Tenho um grande interesse no mundo espiritual: os fantasmas e coisas que não podemos necessariamente ver mas sentir. Uma exploração de fantasmas e coisas dessa natureza”, diz a multi-artista Matana Roberts sobre seu projeto Coin Coin. Falando sobre os cantos dos escravos reinterprados em Anganga, Juçara Marçal completa: “Tem um força ancestral muito grande e achei que seria interessante de se pensar para entrar nesse mergulho totalmente diferente. Os cantos são tão fortes que atravessam o tempo”. Veja abaixo alguns discos que reprocessam a memória africana:

Letieres Leite& Orkestra Rumpilezz - A Saga da Travessia (2016)

Pioneiro no diálogo entre a tradição da escrita musical europeia e o “Universo Percussivo Baiano”, Letieres é herdeiro direto de Abigail Moura e da Orquestra Afro-Brasileira. Em seu segundo CD, trata sobre a indiferença e perversidade que marcaram a diáspora negra, ao mesmo tempo em que apresenta sua herança como parte fundadora das civilizações contemporâneas.

Juçara Marçal e Cadu Tenório - Anganga (2015)

Releituras ruidosas de cantos dos escravos da região mineradora de Diamantina, em Minas Gerais, no início do século XX. Coletadas pelo linguista e filósofo Aires da Mata Machado, as músicas foram gravadas originalmente por Geraldo Filme, Clementina de Jesus e Tia Doca da Portela no álbum O Canto dos Escravos (1982).

Bongar - Samba de Gira

Descrito como “a reunião do mundo espiritual e do mundo físico” e resultado de meses de diálogo com entidades no terreiro do Xambá, o disco traz o universo da Jurema, culto afro-indígena bastante presente em diversos terreiros de Pernambuco. Produzido pelo paulista Beto Villares, o álbum conta com participações de Siba, Juliano Holanda, Lirinha, Juçara Marçal e Adiel Luna.

Zeal and Ardor -  Devil Is Fine (2016)

Um mix da canção gospel e spirituals com riffs lacinantes e peso distorcido do black metal. O disco recria as cantigas de trabalho dos escravos, fazendo uma exploração profunda, desafiadora e iconoclasta da memória norte-americana.

Vários artistas - Goma Laca: Afrobrasilidades em 78 RPM (2014)

Músicas do candomblé, capoeira, jongos, maracatus, emboladas e choro, gravadas originalmente entre as décadas de 1920 a 1950, reinventadas por Karina Buhr, Juçara Marçal, BNegão, Lucas Santanna e Russo Passapusso. Entre elas, Batuque, atribuído ao Quilombo dos Palmares, do século XVII.

Haiti Vodou: 1937-1962 Folk Trance Possession - Ritual Music From The First Black Republic (2016)

Álbum triplo com gravações de canções dos rituais voodu de escravos do Haiti. A complexa religião estimulou a luta pela independência do país, primeira república negra na história e primeira a abolir a escravidão, em 1794. Em Cuba e nos EUA, milhares de escravos haitianos disseminaram a cultura do voodu, que foi a base do blues e da música afro-cubana.

Matana Roberts  - Coin Coin Chapter Three: River Run Thee (2015)

Coin Coin é uma série de 12 álbuns da saxofonista e cantora Matana Roberts que explora a história afro-americana com uma combinação de narrativas históricas, storytelling, performance, som e imagem. Ela explora o canto nas dimensões do grito e do lamento como símbolo da desolação do negro escravizado.

Orquestra Afro-Brasileira

De 1942 a 1970, Abigail Moura comandou Orquestra Afro-Brasileira, projeto musical criado por ele para valorizar a memória e a cultura negra. Inspirado nas cantigas de sua avó e nas memórias do canto da umbanda, o maestro fundiu a percussão africana com o jazz e a música erudita. Colocou os tambores à frente da orquestra, com instrumentos “primitivos” e “civilizados” lado a lado. Lançou dois álbuns, em 1957 e 1968. Este segundo, auto-intitulado (abaixo), foi relançado em LP pela Polysom em 2014.

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