MÚSICA

Crítica: 'Samba de Gira', do Bongar, e a tradição viva que se renova

Novo álbum do grupo mostra a força de uma música "tradicional contemporânea" que vai além do folclore

GGabriel Albuquerque
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GGabriel Albuquerque
Publicado em 11/09/2016 às 11:11
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Novo álbum do grupo mostra a força de uma música "tradicional contemporânea" que vai além do folclore - FOTO: Foto: Divulgação
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O filme Keita! O Legado do Griot, clássico do cinema africano do diretor malinense Dani Kouyaté, mostra o embate entre o conhecimento histórico formal ocidental (representado por um professor) e o conhecimento da tradição oral (na figura do griot, contador de histórias tradicionalista). Num momento chave da trama, o griot responde ao professor: “Meu filho, o saber tem muitos sentidos. O saber é inesgotável, ele é complexo. Ele pode estar no sopro dos ancestrais, no milho e na areia. Ele é transmitido dos espíritos aos homens, e dos homens aos espíritos”.

Como as palavras do griot africano, Samba de Gira, novo álbum do Bongar, nos atravessa com outras formas possíveis do conhecimento. É um enfretamento direto à lógica ocidental e a concepção que o Estado produz da tradição e culturas populares como algo estático, monolítico ou folclórico, uma coisa que deve ser “preservada”, “conservada”, como se banhada em formol – ao invés de uma força dinâmica que se renova.

Em Vento Corredor, Guitinho canta a imanência da tradição, que é, antes de tudo, potente: “O chão do meu terreiro é o umbigo do mundo/ Lá onde começa tudo/ Aprendi a andar por lá/ Nasci no colo da noite, contando as estrelas/ Sangraram na minha cabeça pro meu pai me criar”. Este chão de terreiro que o reconecta aos seus ancestrais é o mesmo que “carrega o meu pensamento pra todo canto que eu vou/ Até pra fora do mundo”.

“Eu vejo os mestres como pessoas com quem a gente pode dialogar de forma humana. É uma entidade, as pessoas acham que é um negócio intocável, mas pra mim não tem isso”, observa (leia a reportagem aqui). Ele evidencia as renovação vindo de dentro, movidas pelos “donos do brinquedo”. Em termos musicais, diz respeito àquilo que ele mesmo classifica como “tradicional contemporâneo”.

Esse discurso aparece de modo transversal em diversos trabalhos da música brasileira atual. Entre eles: os discos da banda paulistana Metá Metá, os muitos projetos da cantora Juçara Marçal, a obra do maestro Letieres Leite e sua Rumpilezz Orkestra e o recém-lançado Ascenção, disco póstumo de Serena Assumpção.

Contudo, entre os pernambucanos, ligados ao maracatu e o cavalo marinho, essa ideia parece ter uma ressonância especial. É o caso das explorações da viola feitas por Caçapa e Hugo Linns, os alcances vocais de Alessandra Leão, a poesia espontânea do jovem Mestre Anderson Miguel e do “baile solto” de Siba. Todos eles lançam novas variáveis em nossa imaginação conceitual, que se assume como variante, versão, transformação.

Trata-se, enfim, de uma tradição viva. Ou, seguindo as palavras do escritor nigeriano Chinua Achebe: “Devemos falar da tradição não como uma necessidade absoluta e inalterável, mas como metade de uma dialética em evolução – sendo a outra parte o imperativo da mudança”. 

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