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Jocy de Oliveira: a pioneira da vanguarda e música eletrônica no Brasil

Aos 80 anos, a compositora curitibana foi parceira de ícone como John Cage e criou inovadoras óperas multimídias

GG ALBUQUERQUE
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GG ALBUQUERQUE
Publicado em 11/02/2017 às 8:40
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Brasil, 1959: a Bossa Nova emerge com dois álbuns arrebatadores, que mudariam para sempre o curso da música brasileira: Chega de Saudade e Bossa Nova, os primeiros discos de João Gilberto e Carlos Lyra, respectivamente.

Naquele mesmo ano a compositora e cantora Jocy de Oliveira também produziu o seu primeiro trabalho. Lançado pela gravadora Copacabana, o álbum levava o título A Música Século XX de Jocy. Apesar do nome pomposo, era de fato uma incógnita musical desafiadora para o momento. A musicista curitibana, na época com 23 anos, partia de um conceito de “anti-Bossa” para propor uma canção atonal e de rítmica assimétrica que abordava vários temas controversos. O álbum abre com Sofia Suicidou-se, passava pelo assassinato de Um Crime e terminava com um estranho Samba Gregoriano – antecipando o encontro do avant-garde com o popular que seria celebrado na música de Tom Zé e Arrigo Barnabé.

Mas aquele foi apenas o primeiro passo. Ao longo de sua vida Jocy de Oliveira pavimentou uma obra pioneira na música de alto repertório. Ainda que pouco lembrada (completou 80 anos em abril do ano passado sem nenhum alarde da imprensa), ela foi uma das principais agentes no processo de renovação da música de concerto no Brasil, importando conceitos das vanguardas europeias do século XX. Ainda em 1961, em parceria com o maestro Eleazar de Carvalho, seu marido, ela organizou a Semana de Música Eletrônica, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e São Paulo.

A Semana apresentou a música eletrônica pela primeira vez no País. Todas as peças de Stockhausen, Cage, Pousseur, Berio, Ligeti foram executadas em primeira audição no Brasil”, destaca Jocy. O evento contou com a presença dos compositores Henri Pousseur e David Tudor - este último apresentou Kontakte, de Stockhausen, e mudou a vida do jovem Jorge Antunes, autor do primeiro LP brasileiro de música eletrônica. O evento teve também a estreia controversa de Apague Meu Spotlght, uma peça de “teatro-música” escrita por Jocy para cerca de 13 atores e bailarinos e encenada Teatro dos Sete (companhia criada pelo diretor Gianni Ratto e os atores Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi e Sergio Britto).

A peça teve participação do compositor italiano Luciano Berio, com quem Jocy manteria um relacionamento amoroso no futuro. “Eu imaginava um tipo de drama eletrônico, mas no Brasil não tínhamos condições de trabalhar num estúdio para música eletrônica e também eram poucos os disponíveis na Europa. Propus-lhe então uma parceria, e ele aceitou com entusiasmo. Eu terminaria de escrever o texto dramatúrgico, e ele faria a música eletrônica com a minha assistência”.

Todos os registros da apresentação foram destruídos pela ditadura. Em depoimento gravado para a vídeo ópera Berio Sem Censura (2012), Fernanda Montenegro relembra: “Estávamos em pleno ensaio no Teatro Ginástico quando ouvimos as dramáticas notícias de que o presidente Jânio Quadros havia renunciado e deixado o país à beira do caos. Interrompemos o ensaio e fomos para nossas casas, perplexos. Não se podia avaliar a avalanche de eventos políticos que isso foi capaz de desencadear. Nem imaginávamos que a Rádio MEC logo seria ocupada pelos militares e o Apague Meu Spotlight seria apagado com tantas outras gravações relevantes para nossa história”.

EUA E EUROPA

Em 1963, Jocy deixou o País e foi viver nos Estados Unidos. Também passou temporadas na Europa e anualmente retornava ao Brasil, onde realizou várias intervenções urbanas. 

“Tive algumas dificuldades quando apresentei outros trabalhos no Brasil durante aquele período, tais quais Comunicações (em 1969, com colaboração do maestro Cláudio Santoro) na Sala Cecilia Meireles e Treasure Hunt (1973) no Festival Internacional de Campos de Jordão, assim como Homage a Duchamp (1974), tomando todo o centro da cidade de Curitiba. Alguns dos eventos foram interrompidos pelo DOPS pois eram inspirados e baseados em ecologia. Fomos salvos pelo Senador Franco Montoro, que interveio”, relata. 

Outro importante trabalho de Jocy nesta fase é Teatro Probabilístico (1967), uma instalação baseada em análise combinátoria. O público era convidado a andar descalço sobre uma “partitura/mapa” de uma cidade imaginária, ativando por meio de sensores um banco de 87 sons concebidos para a ocasião. O trabalho nunca foi apresentado no País. “Seria impossível vir ao Brasil Era provocativo, fazia pensar e questionava o poder militar”, pontua. 

Durante os anos 1970, Jocy voltou-se para a carreira de concertista, intensificando o trabalho Igor Stravinsky (de quem foi solista), John Cage, Iannis Xenakis e outros dos mais proeminentes criadores da música do século XX. “Ouvi-os e assimilei suas reflexões, comentários, críticas. Foram anos de profundo aprendizado e riquíssima influência. Passei sete anos estudando, gravando nos USA e tocando em várias partes do mundo a obra pianística de Messiaen. Fui solista sob a batuta de Stravinsky, me apresentei com Cage, Foss, Santoro, Xenakis, Stockhausen, colaborei com Berio e executei primeiras audições destes compositores”. Essa convivência foi detalhada no livro Diálogo com Cartas (2014), vencedor do Prêmio Jabuti.  Como Lukas Foss disse a ela, em uma noite em Nova York: “Você foi a musa de todos nós”.

A carreira como concertista foi fundamental no seu desenvolvimento artístico, mas a afastou de seu trabalho mais autoral. Portanto, nos anos 1980, ela decide focar em suas próprias composições. “Como pianista, dei minha contribuição para a história da música contemporânea do século XX. Chegara o momento de me concentrar na minha própria criação, que estava sempre relegada a segundo plano por falta de tempo”, afirma. 

É então que ela lança o seu segundo álbum brasileiro, um item cult entre colecionadores: Estórias para Voz, Instrumentos Acústicos e Eletrônicos, lançado em 1981 pela Fermata e com relançamento previsto para o primeiro semestre deste ano pela italiana Soundohm. O disco traz uma série de composições com histórias não-lineares que investigam a semântica e fonética da voz humana e sua manipulação por processamentos eletrônicos, o que gera a narrativa não-linear das “estórias”.

Esta relação com a voz passou a permear toda obra de Jocy, que procurou criar uma “linguagem multicultural inteligível”. O texto da ópera multimídia Inori à Prostituta Sagrada (1993), por exemplo, mistura línguas indígenas do Brasil, japonês, inglês, francês, italiano e português - “embora a linguagem dessa ópera seja, sobretudo, sonora, plástica e gestual”, ressalta. 

No livro Diálogo com Cartas, ela explica: “Num desenvolvimento espontâneo, a voz toma corpo na procura de uma nova linguagem e desconstrução cênico/musical, tentando encontrar novos modelos de estruturas que possam vir a transformar esse conceito tradicional de ‘ópera’ ou relação música-teatro.”

Especialmente desenvolvida para o Planetário do Rio de Janeiro, a série Music in Space, Solaris (2001) mostrou a renovação de Jocy, que consolidou seu interesse e influência pelas teorias do astrofísico Stephen Hawking. “Henri Bergson afirmou que intuição não é percepção, e sim memória, e Hawking questiona: “Por que temos a memória do passado e não dofuturo?”, argumenta. “O Planetário nos oferece uma sensação de movimento, vibrações do universo, como se as frequências viajassem pelo espaço, sugerindo uma maior integração do homem e o cosmo. Um planetário é como um templo. O templo do infinito, onde um evento sensorial e multidimensional reporta a um espaço onírico de reflexão e tranquilidade expandindo nossa percepção”.

Aos 80 anos, Jocy não obteve o devido reconhecimento da dimensão de sua obra. O último grande evento em seu nome foi a mostra retrospectiva Imersão, no Oi Futuro Ipanema, em 2008, concentrando concertos, intervenções e exposição -- incluindo aí a vídeo instalação Noturno de um Piano, que “denuncia a situação agonizante da música erudita no mundo contemporâneo”.

Mas se o mundo agoniza, Jocy está firme. Diz que vai trabalhar “enquanto puder respirar”. Atualmente ela desenvolve mais uma ópera multimídia, entitulada Liquid Voices, a história de Mathilda Segalescu. “Talvez minha última peça de grande porte e desta vez uma ficção vivida num tempo histórico. Esta fascinante história está me seduzindo totalmente e o desafio será não apresentá-la linearmente, deixando margem a participação de um ouvinte ativo”.

EXPLORAÇÃO DAS SIMBOLOGIAS FEMININAS

Uma característica que permeia toda a obra de Jocy é o imaginário das mitologias femininas, especialmente na trilogia de óperas multimídias Inori à Prostituta Sagrada, Ilud Tempus e As Malibrans (veja abaixo o comentário da própria autora sobre cada uma), que marca o retorno da parceria com Fernanda Montenegro. As peças também lançadas em CD e estão disponíveis no Spotify. 

“Absorver o tempo em sua essência não estruturada torna-se uma das questões primordiais na minha música. Isso me leva a trabalhar com a visão atemporal dos mitos nas sociedades matriarcais da Antiguidade, como a ‘prostituta sagrada’ nos contos de fadas, a ‘Diva’ como personagem fadada à morte ou a vítima nas óperas convencionais, o mito da Medea transportado para a contemporaneidade como mulher transgressora, discriminada, heróica, e todos aqueles mitos ligados à figura da mulher e seus valores que se seguem nos fragmentos de meus textos para seis entre minhas óperas”, detalha.

Jocy de Oliveira com Gianni Ratto, Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi e Sergio Britto em 1961 -
Jocy com o seu primeiro marido, Eleazar de Carvalho -
Com o italiano Luciano Berio, com quem trabalhou e manteve relacionamento amoroso -
Jocy com o compositor russo Igor Stravinsky, modernista autor de 'Sagração da Primavera' -
Apresentação da ópera multimídia As Malibrans, com a cantora Gabriela Geluda, em 2000 -
A soprano Gabriela Geluda interpretou diversos trabalhos à frente do Ensemble Jocy de Oliveira -
Ópera multimídia 'As Malibrans' (2000) -
Apresentação da ópera multimídia Revisitando Stravinsky -
Vídeo instalação 'Noturno de um Piano', na mostra Imersão, em 2008, no Oi Futuro Ipanema -
Apresentação da vídeo ópera 'Berio Sem Censura', com Fernanda Montenegro, em 2012 -

Ela observa que o objetivo das óperas não é “contar uma história”. “O intuito é provocar uma audiência ativa e não aceitar uma audiência passiva. É despertar a percepção do ouvinte, espectador. É motivar sua imaginação, é deixar que o ouvinte componha e junte as peças de uma história que tem múltiplas interpretações”, explica. Nesse sentido, percebe sua música como meio de enfrentamento político: “Toda forma de expressão, de manifestação artística é um ato político. Nada a ver com panfletário, mas fazemos parte de um mundo, hoje caótico. Nossa obra é nossa voz e nosso único grito ou mesmo gemido”.

OBRAS COMENTADAS 

Jocy de Oliveira comenta a sua trilogia de óperas sobre mitologias femininas:

Inori à Prostituta Sagrada (1993):

Inori significa “oração” em japonês. A ópera é baseada em uma diversidade de culturas, raças, crenças, religiões e idiomas, compondo uma linguagem sonora do inconsciente. Recria mitos, como o da prostituta sagrada, através de um rito de passagem. Nas antigas sociedades matriarcais, a prostituta sagrada iniciava o homem escolhido por meio do coito sagrado. O resgate dessa figura significa o reencontrar do verdadeiro feminino e seus valores perdidos na sociedade patriarcal moderna.

Illud Tempus (1994):

Meu ponto de partida foram contos de fadas analisados por psicólogas mulheres seguidoras de Jung, como, por exemplo, Marina Warner, Esther Harding, Elinor Gadon, Clarissa Pinkola, Nancy Qualls-Corbett, Adrienne Rich. “Illud tempus” significa “tempo de agora e de sempre”, em latim. É o tempo atemporal do contar, do sonhar, do inconsciente, de quando Deus era mulher. Um conto de fada contemporâneo.

As Malibrans (2000):

Enfatiza o lado escuro da “diva”, sua voz e seu papel como personagem operístico. Na grande maioria dos libretos tradicionais, podemos notar que a personagem feminina é sempre destinada à submissão ou condenada à morte. Ao longo da história da ópera e também na vida real, essas divas com suas divinas vozes tornaram-se deusas no imaginário do público e foram muitas vezes levadas à insanidade. Embora essa peça não apresente uma narrativa linear, grande parte das imagens reconstruídas baseia-se na figura cult de Maria Malibran, mesclada a difusas impressões de “La Stilla”  (“A diva”), ficção de Júlio Verne em seu romance The Carpathian Castle.


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