Centenário

Jacob do Bandolim, cem anos do mestre do choro carioca

Um músico de temperamento difícil, mas de imenso talento

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 17/02/2018 às 9:53
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Um músico de temperamento difícil, mas de imenso talento - FOTO: foto: divulgação
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Numa roda de choro, décadas atrás em São Paulo, em homenagem ao bandolinista carioca Jacob do Bandolim, tocava o Regional de Amador Pinho, bandolinista paulista, hoje lembrado apenas pelos especialistas em choro. Em dado momento, Amador Pinho anunciou que tocaria um choro de sua autoria, que nunca havia apresentado em público, e que o dedicaria a Jacob do Bandolim. Testemunha do episódio, o violonista César Moreno, conta que Jacob, um inveterado pregador de peças, virou-se para ele e disse: “Eu vou fazer uma gozação com esse velho”. Amador Pinho tocou as três partes do choro. Jacob pediu que ele repetisse, depois perguntou: “Esta música é inédita, nunca foi apresentada ao público?”.

O autor garantiu que não. Nunca a tocara fora de casa, asseverou. Jacob perguntou se ele tinha certeza. Amador Pinho disse que
tinha absoluta certeza. E Jacob: “Pois todo mundo lá no Rio toca essa valsa. Quer ver?” Então começou a executar a composição, sem errar uma nota. Amador Pinho suava, aparentava passar mal. Foi aí que Cesar Moreno obrigou Jacob a parar com a brincadeira. Explicou em voz alta que Jacob nunca havia escutado a música antes, para alívio do desesperado Amador Pinho. Não foi, a primeira nem a última vez que ele se valeu de sua memória privilegiada.

Jacob Pick Bittencourt, o Jacob do Bandolim, nasceu, em 14 de fevereiro de 1918, nas Laranjeiras, filho do farmacêutico Francisco Gomes Bittencourt e da polonesa Rachel Pick. Faria, portanto, cem anos. Entre seus muitos clássicos estão Doce de Coco, Assanhado, Noites Cariocas. Como o centenário caiu numa Quarta-Feira de Cinzas, a efeméride não pôde merecer a devida atenção. Celebramos agora, com alguns dias de atraso um dos mais importantes instrumentistas da história da música brasileira, falecido em 13 de agosto de 1969, vindo de um encontro com Pixinguinha.

Não se tire pela brincadeira acima narrada que Jacob do Bandolim fosse afável e sociável. Se estava à vontade entre chorões, não era tão acessível a desconhecidos. Da imprensa só tinha trânsito livre com ele poucos jornalistas, um deles o crítico e escritor Sérgio Cabral (pai do ex-governador do Rio). Concedeu poucas entrevistas, e são raras suas imagens na TV. Embora ele próprio tivesse participado de programas de calouros no início da carreira, aconselhava postulantes a músicos que não participassem de tais disputas. Dizia que seu senso crítico foi aguçado durante o tempo em que foi jurado, acompanhando calouros em programas do gênero. Implacável, gongava quase todos. Gongou um pretendente a cantor chamado Benedito César de Faria, que poucos anos mais tarde seria o César Faria violonista do grupo de Jacob, o Época de Ouro. Ficaria depois conhecido como pai de Paulinho da Viola.

NA LAPA

Criado numa pensão da Lapa, naquele tempo bairro mal afamado, foi um garoto recluso, sem colegas, que se divertia com um velocípede e um cachorro chamado Príncipe. Influenciado por um violinista francês, que perdeu a visão na I Guerra Mundial, pediu a mãe um violino. O arco, no entanto, o cansava e começou a tocá-lo valendo-se de um grampo de cabelo da mãe. Ganhou um instrumento mais adequado à sua inclinação, um bandolim de cuia, modelo napolitano. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio, ele contou que descobriu o choro ao ouvir É do que Há, de Luís Americano, cuja melodia decorou e passou a tocar. Coincidentemente foi o mesmo Luís Americano, a quem conheceu casualmente, que lhe deu um cartão de recomendação para a Rádio Phillips.

No entanto, aquele que é considerado o maior bandolinista do Brasil, não parecia ter muito apreço pelo instrumento. “Acho o bandolim um instrumento enjoado. Começa que a gente tem que arrancar dele um som que ele não tem. Seu som é o daquele instrumento enjoado, o bandolim dos italianos, que a gente não suporta por um LP inteiro. Um xarope”, comentou no citado depoimento ao MIS. Embora tenha deixado uma obra imensa, tanto em quantidade, quanto em qualidade, Jacob do Bandolim considerava-se um amador: “Nunca vivi um minuto só de música”, costumava dizer, o que não significava que se recusasse a ganhar dinheiro com música. Serventuário da Justiça, escrivão de varas criminais, certamente seu sustento vinha mais da
música do que do emprego público.
Jacob do Bandolim era de personalidade complexa. Orgulhava de ser autodidata, irritou-se ao saber que o bandolinista recifense Luperce Miranda, em depoimento ao MIS, logo em seguida ao seu, revelou que ele, Jacob, fora seu aluno. Exigiu ao Conselho Superior de Música Brasileira, ao qual pertencia, que uma réplica escrita por ele fosse anexada ao depoimento do pernambucano: “Nunca fui aluno de Luperce Miranda. Se estivesse sido estaria sobremodo honrado com isso ... mais honrado estaria porque teria conseguido me desvincular do seu estilo e criar o meu próprio”, revela um trecho do longo texto.

Decididamente, os dois mantinham uma relação de amor e ódio. Certa vez, Jacob tocava numa programa de rádio uma música de Luperce Miranda. Este ligou para a emissora e pediu para falar com o bandolinista e travou-se o diálogo (reproduzido do livro Luperce Miranda – O Paganini do Bandolim, de Marília Trindade Barbosa):
Luperce – Que música foi essa que você acabou de tocar? Jacob – Foi tal música, assim, assim, de Luperce Miranda. Luperce – Não, Jacob. Essa música é sua. Quem está falando aqui é Luperce Miranda. A minha música é muito diferente da que você tocou”.

As opiniões dividiam-se quanto a quem era o melhor bandolinista do país: Jacob do Bandolim ou Luperce Miranda? Os dois na verdade se complementavam. Jacob era lirismo, sentimento, enquanto Luperce era a técnica, a rapidez dos seus dedos impressionavam. Foi responsável pelo epíteto “O Paganini do Bandolim”. Em popularidade, Jacob foi mais conhecido. Primeiro, por ser mais jovem, depois porque no auge do sucesso no Rio, Luperce voltou ao Recife para trabalhar na Rádio Jornal do Commercio. Quando retornou ao Rio, Jacob do Bandolim estava com o prestígio consolidado, e ainda levava a vantagem de ser carioca.

RADICAL

Cáustico como crítico, não via nenhum valor nas composições iniciais do jovem Edu Lobo, mas quando escutou Canto Triste (Edu e Vinicius de Moraes), quis gravar a canção, que classificou como uma das mais importante da MPB na época: “Depois dela, Edu Lobo, tem direito de fazer mais cinquenta drogas”. Já com Waldir Azevedo foi menos condescendente. Considerava que Delicado era responsável pela deterioração da música brasileira: “Apoderou-se do ritmo da moda, o baião, num amontoado de sandices, toleimas e absurdos (...) cheguei à conclusão de que não entendo nada de música”. Delicado é uma das músicas
brasileiras mais conhecidas no exterior.

Conservador, Jacob do Bandolim não aceitava modificações na estrutura do chorinho, conforme foram determinadas por Pixinguinha, para ele o maior de todos os chorões. Afirmava que “choro era primeiro ritmo, depois melodia, a harmonia pouco importava”. Considerava que o chorinho existiu desde quando Pixinguinha o definiu, na segunda década do século 20, até o começo dos anos 60. Em 1963 já estaria morto. Diferenciava o verdadeiro chorão do que chamava de “estante”. Este seria o que tocava pela partitura, incapaz de improvisar: “O autêntico é o que aprende o tema e o desenvolve, é antes de tudo, um
improvisador”. Jacob, que morava numa casa na distante Jacarepaguá, onde aconteceram memoráveis rodas de choro, era
radical também quanto a um elemento indispensável ao gênero: “Não se compreende o choro sem um quintal, e os quintais estão rareando dia a dia

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