Álbum

Quatro décadas atrás, Tom Zé enviava uma carta à cultura popular

Há 40 anos, Tom Zé lançava 'Correio da Estação do Brás', disco que ressalta e celebra as raízes nordestinas diante do desterro

Rostand Tiago
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Rostand Tiago
Publicado em 08/03/2018 às 8:15
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Há 40 anos, Tom Zé lançava 'Correio da Estação do Brás', disco que ressalta e celebra as raízes nordestinas diante do desterro - FOTO: Foto: Divulgação
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Em 1978, o baiano de Irará assumiu o papel de um carteiro musical, levando correspondências que resgatavam a vida e a identidade de um lugar do Brasil onde, mesmo com os sofrimentos, pulsa cultura de raízes firmes. Com versos curtos, exalando uma simplicidade que dialoga bem com este lugar cantado, e uma fusão de sonoridades que se tornaram presentes na obra do baiano. É assim que Correio da Estação do Brás veio ao mundo há 40 anos, bordando o cotidiano de um Nordeste sob ópticas que se complementam em uma viva, divertida e saudosista peça de renda da cultura popular.

Para povoar este lugar cantado por Tom Zé, personagens são criados. Um dos mais recorrentes na obra é o migrante nordestino no sudeste do país. Ele é introduzido de cara na primeira faixa, Menina Jesus, uma espécie de canção litúrgica do exílio, acompanhada por uma melancólica viola. Nela, o cantor faz um apelo ao Divino e expressa o desejo latente de retornar ao lugar de onde saiu.

Porém, esse retorno está condicionado a uma série de exigências que começam materiais, mas vão progredindo até questões básicas de cidadania. Óculos de sol, relógio de pulso e rádio de pilha vão dando lugar a ser eleitor registrado, botar filho no colégio carteira do ministério e RG. A canção progride ganhando contornos mais melancólicos até seu calmo fim.

A faixa que nomeia o álbum entra com o tom (e o Tom) do disco já bem estabelecido. Uma pandeirada vai introduzindo outros instrumentos enquanto o sotaque carregado canta versos curtos, com uma certa repetição, que auxilia na cadência da canção. Esses versos anunciam uma viagem a cidade de Feira de Santana, interior da Bahia, em que ele promete se encarregar de levar correspondências de migrantes em São Paulo para os conhecidos que permaneceram no Nordeste.

O Brás, bairro da estação do título da canção, era um lugar conhecido por sua alta concentração de nordestinos. Esse diálogo reflete a essência do disco, no sentido de ser uma ponte entre localidades com pessoas conectadas pelas raízes. Correio da Estação do Brás é sucedida pela melancólica Carta, em que Tom agora assume o papel do correspondente que precisa se comunicar com aqueles que deixou na terra natal.

A semelhança temática ainda acontece com Pecado, Rifa e Revista e Pecado Original, ambas falando sobre pobreza e classes sociais. A primeira vem embalada em um sambinha com cara de Bezerra da Silva, empregando uma comicidade, salientando que Pecado, Rifa e Revista/ O pobre paga é à vista.

Pecado Original leva uma sonoridade com resquícios da fase tropicalista do cantor, contando ainda com um mais diálogo com Deus, desta vez em tom jocoso, sobre um possível balanço de pecados entre pobres e ricos.

Zé ainda revista o cancioneiro popular desse território com faixas como Morena, com um triângulo conferindo uma cadência típica do baião, e A Volta de Xanduzinha (Maria Mariô), funcionando como uma continuação de Xanduzinha, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Essa atmosfera ainda é mantida na divertida Lavagem da Igreja de Irará, narrando cenas do cotidiano e as aventuras do músico na cidade que dá nome a faixa, seu local de nascimento.

Últimos acordes

Em seus últimos momentos, o álbum vai se afastando gradualmente da linha que vem apresentando. Amor de Estrada é marcada por uma forte influência do cancioneiro romântico/brega, à la Waldick Soriano, remetendo ao imaginário da figura do caminhoneiro que cruza as estradas do país, agora entregue aos lamentos de uma dor de cotovelo.

As duas últimas faixas, Lá Vem Cuíca e Na Parada de Sucesso, vão falar de música em si. A primeira faz uma crítica de cunho formal ao samba, debochando do uso exagerado de cuícas no ritmo. Ela soa como uma produção talvez pensada para o álbum anterior, Estudando o Samba, de 1976, mas que não teve espaço no momento. Na Parada de Sucesso brinca com o próprio estilo de Tom Zé, lhe garantindo um ficcional topo das paradas de sucessos, mesmo com seu afastamento mercadológico.

E foi assim que Tom Zé assinou essa correspondência há quatro décadas. Uma carta não tão lembrada quando comparada a outras que remeteu. Mas seu vivo conteúdo tem poder de conseguir destinatários fiéis até hoje, que celebram a capacidade do músico em fazer um som que consegue ser territorial e universal ao mesmo tempo, cantando um povo, uma cultura, um cotidiano que emana poesia e música.

 

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