Tropicália 50

Tom Zé relembra o furacão tropicalista que abalou a MPB

Baiano revela detalhes de suas duas prisões em São Paulo

JOSÉ TELES
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Publicado em 03/06/2018 às 9:47
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Baiano revela detalhes de suas duas prisões em São Paulo - FOTO: foto: reprodução
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Em 1966, a revista Realidade estampou na capa uma foto dos principais nomes que despontavam na música popular brasileira (no Sudeste, naturalmente). Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Nara Leão, Paulinho da Viola, Jair Rodrigues, entre outros. O baiano Tom Zé não foi incluído nesta radiografia da geração cuja música foi rotulada de MPB: “Quando a revista fez a matéria, eu não estava aqui. Vim fazer o Arena Canta Bahia, em 1965, mas resolvi voltar pra Bahia, onde tinha uma bolsa de estudos ”, explica Tom Zé, em entrevista para o Jornal do Commercio, especial para esta série sobre os 50 anos do tropicalismo.

 Ele morava em Salvador quando Caetano Veloso e Gilberto decidiram explodir as estruturas da MPB. Os que a defendiam estavam em vantagem numérica. Os tropicalistas precisavam reforçar sua trincheira. Caetano Veloso voou paraa capital baiana a fim de convocar Tom Zé, reservista do grupo desde o início dos anos 60. “Encontrei Caetano no Centro, e ele me chamou para ir embora com ele, porque na Bahia não ia me acontecer nada. Eu fazia uma música diferente. Sobre coisas do dia a dia, e não a música chamada contemplativa, a música com coisas da Bahia”, diz Tom Zé e dá um exemplo:

 “Mário Cravo botou um Antônio Conselheiro na porta do Teatro Castro Alves, no dia da inauguração, quando houve um incêndio. Da sacada do palácio do governo se via o teatro. Um chargista francês, que trabalhava em Salvador, botou na primeira página do jornal o governador da época, Antonio Balbino, vestido de Nero, como se ele tivesse mandado tocar fogo no teatro para fazer verso. Dessas coisas é que eu fazia música. Quando a primeira música minha, Made in Brasil, chegou no Programa de Flavio Cavalcanti disseram que aquilo não era música, nem era letra”.

 Do grupo baiano, Tom Zé possuía a formação musical mais sólida. Se não tivesse engrossado as fileiras da Tropicália, provavelmente teria prosseguido a carreira acadêmica, na qual já se encontrava bem encaminhado em 1967: “Eu estava na universidade, como um aluno precioso. Era jornalista da escola de música, apresentador de concertos, dava aula, estava rico, tinha até carro. O único carro que parava na porta do restaurante universitário era o meu, um Fusca azul. Então, de repente, teve um fuxico lá, puta que pariu, e eu cheguei lá e entreguei os cargos. Fiquei sem pai nem mãe. Quando encontrei Caetano na rua, e fui com ele pra São Paulo. Eu não entrei numa aventura, eu já era uma aventura”.

 Pelo fato de ter voltado à Bahia, quando os amigos baianos foram para São Paulo, Tom Zé ainda era pouco conhecido enquanto acontecia o tropicalismo. Tornou-se quase popular no final de 1968, quando fez shows com Gal Costa, que também apareceu para o grande público na mesma época, ao defender Divino Maravilhoso, no IV Festival da TV Record, vencido por Tom Zé com São São Paulo.

 “Cheguei em São Paulo, encontrei a grande novidade, coisa que se falava todo dia, que toda loja iria virar banco. A loja com venda à prestação era a novidade. Fui ver o filme de Luiz Sérgio Person, São Paulo S.A. Fui ver o filme e saí de lá com febre, era tudo que eu precisava pra poder realmente me engajar no coração da Pauliceia. Tinha passado cinco anos sem fazer música por causa da universidade de música. Comecei a fazer música, e ia mostrar a Caetano, foi assim que fiz o disco todo. Ele foi ver a gravação. O Gil foi uma vez depois do festival, e falou: Que é que isso, você tá na fossa? Não fez uma música que represente nossa situação. Mas isso faz parte, por acaso entrou este argumento”, conta, referindo-se às músicas que fez para o álbum de estreia, Tom Zé, lançado com selo da pernambucana Ronzeblit.

 Uma matéria da revista Intervalo revelava quanto os artistas gastaram com a roupa que usaram para se apresentar no festival. Os Mutantes, por exemplo, gastaram R$ 450 nos trajes com que defenderam 2001 (de Tom Zé e Rita Lee), mas ganharam R$ 1.000. Tom Zé confessou não ter gastado nenhum tostão: “O Guilherme Araújo me emprestou tudo. Até a roupa. Não tenho dinheiro. Meu conjunto, então, estava na miséria. O pouco que ganhei, dividi com eles, um negócio de compadre” (Guilherme Araújo revelou à revista que os trajes de Tom Zé custaram R$ 500).

 O certo é que a vitória de Tom Zé deixou muita gente surpresa, conforme atesta um diálogo de bastidores entre ele e o compositor gaúcho Beto Ruschel, parceiro com Renato Teixeira da desclassifica A Madrasta, defendida por Roberto Carlos. Tom Zé comentou com Ruschel: “Viu, neguinho? Eu não esperava”. E Ruschel: “Para falar francamente, nem eu”. O IV Festival da Record foi realizado quando o tropicalismo já estava para se desintegrar. A final foi em dezembro, às vésperas do AI-5. Já havia acontecido o happening de É proibido Proibir, de Caetano Veloso, com os Mutantes, e o americano John Dandurand, na eliminatória do Festival Internacional da Canção.

 Para a Tropicália não havia mais caminho de volta, mesmo que não soubessem para onde se encaminhava. Tom Zé faz sua análise do movimento:

 “O tropicalismo não tinha nem uma teoria, a não ser o que a gente pensava sobre música, o que achava que era assunto, procedimento, escolha. Toda geração, quando chega, se apresenta fazendo isso. Por acaso, a gente era uma geração que tinha vários problemas completamente diferentes do que qualquer geração podia ter. Esta parte que vou falar agora, Caetano não tá de acordo com tudo. Quando Caetano e Gil foram instados por uma pressão do grupo artístico que estava com eles, Rogerio Duarte, Roberto Bressane, depois os concretistas Haroldo e Augusto de Campos, Hélio Oiticica. Quando este povo todo chegou, começou a fazer aquela pressão.

 Minha tese é de que toda essa coisa que Caetano e Gil tinham jogado fora da educação pré- aristotélica deles, foi retirada do hipotálamo e voltou para o córtex. Os dois, além de serem gênios, olharam para o Brasil sob uma ótica aristotélica, e não aristotélica, com uma perspectiva que ninguém podia ter. Só podiam ser muito bem servidos. Tanto que o tropicalismo é um bolsão artístico de literatura, pintura, cinema, porém o que mais foi trabalhado foi a música. Como aconteceu com o Impressionismo, no fim do século 19, na França, foi a imprensa que botou o nome”

DIVINO MARAVILHOSO

Visto por poucos, o programa Divino Maravilhoso, dirigido por Fernando Faro e Antonio Abujamra, foi uma espécie de balão de ensaio da Tropicália. Nele foi feito o enterro do tropicalismo. Que punha em prática ideias transgressoras, como uma ceia larga, que chocou o católico e veterano tenor Vicente Celestino, de quem Caetano Veloso gravou Coração Materno. Não se sabe se pelo que viu na gravação do programa, ou por problemas pessoais, Vicente Celestino sofreu um enfarte antes do programa ir ao ar.

 Outra cena ainda mais chocante do Divino Maravilhoso, realizado na época natalina, mostrava Caetano Veloso segurando um revólver, enquanto cantava Boas Festas, de Assis Valente. Tom Zé aproveita a entrevista para fazer uma reparação histórica:

 “Um jornalista daqui disse que Caetano apontava uma arma para a própria cabeça cantando Boas Festas no Natal. Mas não foi assim. Caetano cantava e apontava a arma para o público. Fernando Faro, que era um malandro danado, pra não se meter em rolo, filmou o busto de Caetano o tempo todo. A arma ninguém via na televisão. Isso vazou por alguém que estava lá na gravação contou. Não tinha revólver na cabeça, seria impossível o Faro separar o revólver de Caetano. Uma cena que me deixou emocionadíssimo, que coisa assustadora. Eu estava lá, uma coisa fantástica. Com a ditadura nas costas, Caetano Veloso com a arma na mão, descuidadamente, cantando e apontando para a plateia. A gente gravava e ia pra casa ver. Terminava as oito horas, ia pro ar às oito e meia. Mas, em casa, quando vi a cena sem o revólver, eu tive uma dor filha da puta”. Tom Zé apresentou as duas últimas edições de Divino Maravilhoso, já com Caetano Veloso e Gilberto Gil presos:

 Eles me pegaram em casa para fazer o programa. Mas vocês ainda querem fazer o programa? Questionei. Fui lá, e tomei conta. Lembro que Marlene foi ao programa. Fiz uma porção de perguntas malandras pra Marlene responder, com aquela vivacidade inteligente dela. Mas Marlene pensou que eu tava gozando dela. Eu mudei o tipo de pergunta que eu fazia no questionário. Não tinha nada disso. A gente a amava, ouvia no rádio a vida toda, eu, um novato, esculhambar uma geração? Eu não esculhambo nem quem não presta, quanto mais quem presta. Depois da segunda vez que apresentei o programa, ele acabou. Só aconteceram três programas”.

EM CADEIA

Tom Zé foi preso, no início dos anos 1970 e comenta que não vê glória nenhuma nisso. A geração que fez arte depois de 1964 caminhou o tempo todo no fio da navalha, mesmo quando ele não era tão visível, como se tornou depois do AI-5. Tom Zé lembra um episódio acontecido em 1965: “Uma vez, no CPC, um general chegou durante o espetáculo Arena Canta Bahia e prendeu Plínio Marcos na porta. A gente ouviu um grito. Quando acabou o primeiro ato, alguém avisou para ninguém descer do palco porque no lugar de trabalho não se pode prender pessoa nenhuma. Ficamos em cima do palco. Não fomos presos. O general pediu o autógrafo de Bethânia e de outra pessoa, da qual não lembro o nome. A filha do general disse que ele não entrava em casa sem o autógrafo de Bethânia.”

 Suas prisões tiveram episódios entre o pitoresco e o surrealista. Aconteceram no governo do general Médici, quando pessoas simplesmente sumiam. Uma foi uma batida à procura de drogas. Encontraram um baseado, que por acaso estava lá. Tom Zé recebeu de alguém num teatro: “Eu não fumo maconha, por causa da minha asma. Um dia eu estou num num show, assistindo, todo mundo de cigarro de maconha aceso. Me ofereceram um, fiquei com vergonha de não aceitar. Peguei o cigarro, apaguei, e botei dentro da frasqueira. Quando a polícia veio correr a casa atrás de drogas, acharam este cigarro. Então desmontou praticamente a casa procurando drogas pesada, me levou preso.

A outra prisão foi mais dramática, porque não se sabia do seu paradeiro. Neusa, sua mulher, procurou por ele até em necrotério. Depois de ensaiar para o programa de Hebe Camargo, Tom Zé foi detido e algemado no estacionamento. Mas os policiais constataram que não cabia mais um passageiro no carro deles. O baiano foi para a prisão dirigindo o próprio Fusca.

 “De repente ouvi uma voz chamando meu nome, num sábado à noite. Quem chamava era um dos dois jovens agentes que Polícia Federal destacou para ficar na TV Record. Vieram me trazer o jantar. Perguntaram se podiam fazer alguma coisa por mim. Pedi que avisassem a Neusa. Eles foram presos por isso”. Tom Zé conta que não foi torturado, mas que continuou incomunicável até a segunda-feira, quando o levaram até o delegado do Dops.

 Ficou na sala sentado, esperando. Da janela via trens passando, estava distraído, quando a voz do delegado o trouxe de volta à realidade. O policial lhe fez apenas duas perguntas. Uma: “O Silvio Santos é legal?”. Tom Zé diz que tomou um susto: Perguntei de volta: Quem? Silvio Santos? Nunca ouvi ninguém falar mal dele não”. A outra pergunta: “E Hebe Camargo?”. E Tom Zé: “Comigo sempre foi bem delicada”. Pronto. Terminou o interrogatório. Ele estava livre.

Vem aí o elemento surreal: a garagem da repartição policial já estava fechada. Tom Zé teria que voltar no dia seguinte para apanhar o carro. “Voltei, mas com medo. Lembrei daquela história, soldado no quartel quer serviço. Tive medo de voltar à prisão e ser preso de novo”.

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