Ttropicália 50 anos

Hélio Oiticica é o autor da obra que deu nome à Tropicália

Um batismo feito à revelia dos integrantes do movimento

JOSÉ TELES
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Publicado em 18/06/2018 às 14:36
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Um batismo feito à revelia dos integrantes do movimento - FOTO: foto: reprodução
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“Num aspecto, Tropicália é um ambiente que ruidosamente apresenta imagens tropicais, e seria muito fácil tomá-la superficialmente como uma peça de folclore brasileiro. Mas o nível secreto de Tropicália é o processo de penetrá-la, uma teia de imagens sensoriais que produz um confronto intensamente íntimo, especialmente e talvez com a mais profunda de todas as imagens na completa escuridão, o global aparelho de TV ligado. O típico vira verdadeiro neste espaço mítico”, afirma certo trecho do livro Aspiro ao Grande Labirinto (Editora Rocco, 1986), uma seleção de textos e artigos do artista plástico Hélio Oiticica (1937/1980). A obra Tropicália é um “penetrável” criado por Oiticica, instalado, pela primeira vez, no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro, no verão de 1967.

O penetrável de Hélio Oiticica foi bastante badalado, rendeu entrevistas com o autor, análises, críticas negativas, levou o cineasta Luiz Carlos Barreto, figura poderosa da cultura carioca, produtor do cinema novo, a ligar à obra à música a do chamado grupo baiano (em que cabiam paulistas, piauienses e cariocas), mas também à Terra em Transe, o filme de Glauber Rocha (1967) e ao O Rei da Vela, peça de Oswald de Andrade, montada por Zé Celso Martinez.

Três obras que escancaravam a cultura brasileira tropical, suburbana e interiorana, de bananas, pinguins de geladeira, papagaio e araras, ternos de linho S-120. Em papo de mesa de bar, Barretão propôs uma festa à brasileira, no Copacabana Palace. Sugeriu-se que outra festa acontecesse na Praça Nossa Senhora da Paz, no coração de Ipanema, com homens e mulheres vestidos a rigor, e bandeirolas decorando o local. Não era exatamente isto que Caetano Veloso e Gilberto pretendiam, quando tomaram de assalto os palcos dos festivais de música popular. Um artigo de Nelson Motta reforçou a ideia de brasilidade extrema, em que não se estabeleciam limites entre o bom e o mau gosto, de manifesto, intitulado Cruzada tropicalista.

Em abril de 1968, o Jornal do Brasil anunciava que dois artistas plásticos, o pintor Gerson e o entalhador José Barbosa (de Olinda), promoveriam uma espécie de happening, numa galeria chamada Giro: “Repentistas e sanfoneiros vão fazer a música; haverá jantar – carne seca, mungunzá e batida de maracujá. Para completar o chão será coberto de folhas de canela”. A nota recebeu o título de “Tropicália sertaneja”. Àquela altura começava-se a chamar a música do grupo baiano de Tropicália ou tropicalismo. Mas o próprio Caetano Veloso, no Recife, em maio, de 1968, em entrevista no Aeroporto dos Guararapes, ainda não sabia definir o que era tropicalismo:

“O autor de Alegria, Alegria declarou que essa música foi a que mais lhe rendeu financeiramente. Quando ao tropicalismo, não sabe bem explica-lo, já que não é um movimento bolado, estruturado, não nascendo de confabulações prévias e preparatórias. Adiantou que o nome tropicalismo foi criado pela imprensa, particularmente pelo jornalista Nelson Motta, do JB” (JC, em 4 de maio de 1968). Em julho, Caetano Veloso passaria rapidamente pelo Recife, vindo da Europa. Novamente foi questionado pelo repórter do JC a respeito da Tropicália. Na matéria, em que é chamado de “o cantor de cabelos assanhados”, declarou: “Não há definição para o movimento tropicalista, e quem pretender fazê-lo demonstra tão somente que está por fora da essência tropicalista, que é espontaneidade e indefinições”.

CONFUSÃO

O rolling stone Keith Richards costuma dizer que o mundo era em preto & branco até o surgimento do rock and roll, em meados dos anos 50. Até Alegria, Alegria, a música popular brasileira era em preto & branco. Em 1968, o bolero e o samba-canção ainda ocupavam uma considerável fatia da programação ds emissoras de rádio, enquanto o iê-iê-iê apesar das guitarras e cabelos longos, também primava pelo conservadorismo, e descompromisso com a política (com as exceções de praxe). Em junho de 1967, na coluna Jovem Guarda, assinada por Roberto Carlos, no jornal Diário de Notícias, de São Paulo, intitularam de “Um ministro barra limpa” um texto, supostamente escrito pelo Rei, em que se tecem elogios rasgados a Gama e Silva, ministro da justiça do governo Costa e Silva, e redator do Ato Institucional nº5, o AI-5, que RC conheceu como reitor da USP:

“Observo aquele sorriso franco e paternal, cheguei a imaginar o quanto lhe deve ser difícil determinar a aplicação de uma lei implacável. Mas estou certo de que, quando o faz, está absolutamente seguro de sua necessidade. Feliz de uma país que tem um ministro desse gabarito no seu ministério. Venturosa a juventude que tem um amigo compreensível como reitor de sua universidade. Feliz também sou eu por privar da amizade deste ministro barra limpa”. Roberto Carlos era o ídolo de uma juventude de uma sociedade conservadora. É certo que havia canções de versos agressivos na Jovem Guarda, a exemplo de E que Tudo Mais Vá pro Inferno ou Vem Quente que Estou Fervendo, ambas de Roberto e Erasmo; Mas no geral, as letras do iê-iê-iê caberiam em boleros, ou sambas-canção.

Não é de admirar, pois, o choque causado pela música e pelas atitudes do grupo que seria batizado de tropicalista. Em época de cabelos longos, os ídolos da música popular usavam cabelos escovados, copiavam o visual dos grupos ingleses, Caetano e Gil vestiam caftãs, usavam cabelos ouriçados, sandálias, colares vistosos. Hélio Oiticica a princípio estranhou, mas depois apoiou integralmente a Tropicália: “Burgueses, subintelectuais, cretino de toda espécie pregar tropicalismo, Tropicália (virou moda), enfim a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é... O mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras: é a consciência de um não condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo seja intelectual, social, existencial, escapa à sua ideia principal”.

Hélio Oiticica, que vivia arte intensamente, 24 por dia, um dos mais criativos artistas de sua época, certamente inquietava-se quando lia uma nota feito esta, do JB, de fevereiro de 1968. A nota é sobre a badalada Banda de Ipanema, que reunia os intelectuais de esquerda e a esquerda festiva da folclórica Ipanema dos anos 60. Os organizadores da banda deram a ideia para que os foliões desfilassem no mais autêntico estilo Tropicália: “Uma espécie de autêntico mau gosto, misturado com a graça das garotas. Homens de branco, gravatas largas, berrantes, e lencinho de três pontas. Charuto na boca. Mulheres de saias rodadas, colares e pulseiras, grandes decotes... Não se esqueça do colorido. Quanto menos combinar, melhor”.

APROXIMAÇÃO

Em novembro, já com o Tropicália oficializado como nome do movimento, Hélio Oiticica aproximara-se do grupo o suficiente para avalizar suas experiências, num longo artigo no Correio da Manhã, em novembro de 1968, iniciado com uma análise das vanguardas brasileiras, em que inclui o tropicalismo: “Na música popular essa consciência ganhou hoje corpo, o que antes parecia de artistas plásticos e poetas, de cineastas e teatrólogos, tomou corpo de modo firme no campo da música popular, com o grupo baiano de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato, Capinam, Tom Zé, que se aliou ao maestro Rogério Duprat, músico ligado ao grupo Concreto de São Paulo, e ao conjunto Os Mutantes, e hoje assume uma dramaticidade incrível a luta destes artistas contra a repressão geral brasileira, tão conhecida minha há dez anos (repressão não só da censura ditatorial, mas também da intelligentzia bordejante).”

Por um destes caprichos tropicalissimamente brasileiros, foi uma frase “Seja marginal seja herói”, cunhada por Oiticica numa obra em que reverencia o bandido Cara de Cavalo, que apressaria o fim do tropicalismo (como movimento, não em influência). A frase estampada no cenário de um show que Caetano, Gil, os Mutantes e o músico americano John Dandurand apresentaram na boate Sucata, na Lagoa, foi o gancho para a proibição do show em 1968. O promotor Carlos Melo sentiu-se ofendido por uma bandeira com a frase de Oiticica. Os tropicalistas recusaram-se a retirar a bandeira, ou modificar o texto do roteiro. O espetáculo saiu de cartaz, em outubro de 1968. Dois meses depois Caetano e Gil seriam presos.

Hélio Oiticica viajaria antes disso para Londres, com os custos bancados pelo governo brasileiro, para expor seus parangolés, penetráveis, e ambiências, com bastante badalação na capital inglesa. Alguns meses depois reencontraria Gilberto Gil e Caetano Veloso convidados a saírem do país, depois de prisão no Rio e confinamento em Salvador, período que Oiticica detalha em cartas trocadas com a também artista plástica vanguardista Lygia Clark (1920/1988).

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