50 anos de Tropicália

Guilherme Araújo, o carioca que criou a imagem da Tropicália

Ele definia roupas e cabelos, e sugeria temas para canções

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 01/07/2018 às 8:35
Foto: Arquivo Estadão Conteúdo
Ele definia roupas e cabelos, e sugeria temas para canções - FOTO: Foto: Arquivo Estadão Conteúdo
Leitura:

 A Tropicália existiria sem o carioca Guilherme Araújo, empresário de quase todos os tropicalistas, mas não seria a mesma e, provavelmente, não teria o mesmo impacto naquele momento. Os desdobramentos ficam no campo da probabilidade, mas a enorme importância do produtor, empresário e agitador cultural raramente é enfatizada quando se escreve sobre o movimento. Nem mesmo os protagonistas, ou seja, os artistas, dão a GA o que é de GA, até porque quem os procura para falar sobre a Tropicália não inclui o empresário na pauta.

 Em seu autobiográfico Verdade Tropical Caetano Veloso reconhece que o empresário não se limitou a ser coadjuvante, foi protagonista da maior importância. Tom Zé, por sua vez, concede os devidos créditos a Araújo, que cuidou não apenas do visual dele, como até intermediou a gravação do LP de estreia, em 1968:

 “Guilherme Araújo achava que eu deveria gravar num lugar diferente de Gil e Caetano. Ele falou com João Araújo e eu fui pra Rozenblit. Guilherme fez muita coisa, colaborou muito. Ele mudou o nome de Gal, mudou meu nome. Eu era conhecido na Bahia como Toin. Ele era a pessoa que estava por atrás de tudo, não aparecia nada. Mas até a roupa que a gente usou era dele. Caetano usou o paletó dele no festival, eu usei algumas roupas que Guilherme trouxe da Inglaterra. ”, testemunha.

 Guilherme Araújo dava valor a aparência, isso já antes do tropicalismo. Em 1966, quando passou a trabalhar com Nana Caymmi, recém-chegada da Venezuela, onde morou alguns anos, saía a notinha na revista A Cigarra: “Nana Caymmi já está com seus cabelos cortados à Mia Farrow, imposição de Guilherme Araújo”. Não apenas às roupas, como igualmente aos mínimos detalhes. Foi ele quem instigou Caetano Veloso a compor É Proibido Proibir, repaginou Gal Costa, a simpática e afinada Gracinha, ou Gau (com u mesmo), para os íntimos. Transformou-a na transgressora cantora que confrontou a plateia do IV Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, defendendo Divino Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gil (a frase que nome à música era um bordão que o empresário vivia repetindo)).

 As batas e caftãs com as quais Caetano e Gil se paramentaram no auge da efervescência tropicalista, as provocações, cabelos ouriçados, as muitas notas plantadas na imprensa, também constavam do cardápio que o empresário montara para seus contratados. Nelson Motta, que deve ser incluído nas hostes do tropicalismo porque foi quem lhe propagou o nome,  e também seu principal divulgador e apologista, em entrevista na época ressaltou a influência do empresário na estética dos tropicalistas:

 “... Quanto ao personagem Caetano, no que se refere à sua aparência exterior, acho que, nesse caso, seu empresário Guilherme Araújo, deve exercer bastante influência, e duvido muito que Caetano acredite nesse tipo de roupa que está usando. Mas, se ele acha que esse aspecto circense auxilia a sua comunicação com o público, o problema é dele, e nada tem a ver com a música que está fazendo”.

 Com passagem de um ano entre a Alemanha, França e Itália, Guilherme teve oportunidades de assistir a muitos shows em diversas casas noturnas, e quis introduzir o modelo no Brasil, onde o incipiente show bizz nacional era ainda dominado por cantores do rádio. Quando foi trabalhar com Aloysio de Oliveira que então produzia shows na boate Zum Zum, inovou a divulgação de discos e shows no país. Em lugar das notinhas nas colunas mais óbvias, passou a ocupar páginas nos caderno culturais.

 Queixava-se de que aos artistas brasileiros “faltavam-lhes cultura, estrutura e presença cênica”. Os três itens encontrou em Maria Bethânia, numa parceria que acabou, mas que a desenvolveu rapidamente como uma diva no palco. Dos baianos, Maria Bethânia foi sua primeira contratada, para quem produziu o show/recital e, O Cangaceiro, em 1966, com arranjos de Jards Macalé (que também tocou violão), confirmou  Bethânia como uma estrela, depois do retumbante sucesso de Carcará 9João do Vale/José Cândido). A parceria, no entanto, terminou em turbulência, e seu não engajamento na Tropicália certamente tem a ver com isso.

 SURRA

 Em 1969, numas das primeiras grandes entrevista do semanário O Pasquim, Bethânia revelou detalhes da briga com Guilherme Araújo:

 “Depois fui contratada pelo Guilherme Araújo, nem conhecia ele. Fui conhecê-lo aqui. Fiz aquele show no Cangaceiro, depois Gil também fez, e disse que iria fazer toda a série baiana, porque pedi para ele fazer. Eu dizia a ele, assina contrato com os meninos, assina. Mas ele dizia que não, que o Caetano não queria trabalhar, não sei o quê. Dava sapatos velhos para os meninos, sabe, para eles usarem. Fazia horrores. Eu fiquei muito irritada com aquilo, até que um dia eu briguei com o Guilherme Araújo”.

 Quando Bethânia diz que brigou, não é no sentido figurado, de rescindir contrato. Foi briga mesmo, física: “Eu tive uma briga com ele porque ele não me pagou uma apresentação na TV Excelsior de São Paulo, e me cobrou uma conta de maquiagem de 600 contos durante seis meses. Eu falei com ele, Guilherme já paguei. E ele ficava, seiscentos contos, seiscentos contos. Até que um dia eu não aguentei mais e dei uma surra nele ... Quebrei a cara dele toda. Havia até uns caras da TV italiana que estavam filmando lá em casa. Saiu todo mundo correndo. Eu estava tomando banho, e ele falando, falando. Eu saí nua e dei uma surra nele”.

Mais tarde o empresário, se desentenderia com Gal, Caetano e Gil. Desavenças que chegaram a ser resolvidas na justiça. Alguns dias depois da explosiva apresentação de É Proibido Proibir, no Festival Internacional da Canção de 1968, Caetano Veloso concedeu uma entrevista no Rio (relaxou durante três dias na praia de São Vicente, no litoral paulista). Chegou para a entrevista com a mulher Dedé, Gal Costa, e o sempre presente Guilherme Araújo. Trajava a mesma roupa de plástico que usou no FIC, mais colares de dentes e contas coloridas, “Ideia de Guilherme, pra variar”, explicou.

 Quando entrou na vida dos baianos, entre 1965 e 1966, Guilherme já se tornara figura carimbada no meio artístico e presença constante nas colunas dos jornais cariocas e paulistas. Ainda adolescente, estudante do Colégio Pedro II, Guilherme Araújo procurou o teatrólogo Pascoal Carlos Magno, e foi aceito no Teatro Duse, dirigido por Magno. Teatro, porém, limitava suas ambições. Desinibido, conseguiu um lugar na televisão, inicialmente como assistente e relações públicas do programa de Jocy Camargo, popular e de grande audiência na TV Tupi. Produziu programa com Paulo Autran, com texto de Antonio Maria, enquanto isso ia plantando notinhas nas colunas.

 Em 1961, dividia o Telemagazine, programa de entrevistas, no Canal 9, com Ronald de Carvalho, estrategicamente anunciava antecipadamente que louvaria determinadas colunas no ar. Trabalhou com Maurício Sherman e com Geraldo Casé (pai de Regina Casé). Ousado, Guilherme Araújo logo passaria a produzir shows, de nomes como Nara Leão, do saxofonista americano Booker Pitman e de sua filha Eliana Pitman. Organizou uma mostra brasileira no festival de Cannes, em 1966, até que chegou a Maria Bethânia, daí a Caetano Veloso e aos demais baianos.

 Svengali do tropicalismo, ele não foi exatamente um Brian Epstein (o empresário que descobriu e forjou a imagem inicial dos Beatles), mas uma contraparte brasileira de Andrew Loog Oldham, o jovem produtor que fez a fama de mau dos Rolling Stones. Guilherme Araújo teve como contratados da Gapa (Guilherme Araujo Produções Artísticas), Caetano, Gil, Gal, Tom Zé, Os Mutantes, Beat Boys e Marília Medalha. Sua ingerência na carreira dos artistas, embora respeitando talentos e individualidades de cada um, ia ao ponto de intervir, ou pelo menos tentar intervir, nos horários de boêmia.

 “Hoje é Guilherme quem providencia para que seus contratados estejam na hora em seus compromissos, discretamente auxilia nas entrevistas, dá palpite nas fotografias e exige que a famosa boêmia artística se restrinja ao mínimo em seu grupo”, trecho de um perfil do produtor na extinta revista A Cigarra (assinado por Arlete Neves), que atribuía a Guilherme Araújo a frase: “Quem dorme muito tarde não consegue trabalhar”. Ou esta outra: “O Rio é bonito demais para inspirar trabalho intenso: para isso São Paulo é muito melhor”. Ele se encarregava até dos pagamentos do imposto de renda dos artistas, revelava a jornalista.

 EXTERIOR

Desde o exílio forçado de Caetano e Gil em Londres, Guilherme Araújo procurava abrir-lhes uma carreira internacional, mas a música pop na época era um feudo de americanos e ingleses (com poucas exceções). Nestes centros sabia-se pouco ou nada do que se fazia na África ou América do Sul. Guilherme chegou a rebater críticas sobre o fracasso inicial dos baianos lá fora.  A trinca fez apresentações na Inglaterra, para público pequenos, com pouca repercussão. Além disso, ele anunciou turnês americanas, que não se realizaram. .

Nos primeiros anos da década de 70, Guilherme Araújo acrescentou à sua trupe de contratados, Jorge Mautner,  Wanderléa, Luiz Melodia,  Jards Macalé. Incensando a carreira destes artistas.  Conseguiu desvincular, em pouco tempo, Wanderléa  da imagem da “Maninha” de Erasmo e Roberto na Jovem Guarda, levando-a a gravar Caetano Veloso (Chuva Suor e Cerveja e Jorge Mautner (Quero ser locomotiva) da Nos anos 80, Guilherme Araújo tornou-se também promoter, realizando festas badaladas para o beautiful people carioca, uma destas a Sugar Loaf, no Pão de Açucar.

  Nos anos 80, Guilherme Araújo tornou-se também promoter, realizando festas badaladas para o beautiful people carioca, entre estas a Sugar Loaf, no Pão de Açucar, e o Gala Gay, que transportou da Zona Norte para a Zona Sul do Rio. Problemas de saúde, em conseqüência da diabetes fez com que se afastasse da movimentada vida social. Chegou a anunciar a aposentadoria, e morou algum tempo em Nova Iorque.  Guilherme Araújo morreu em 21 de março de 2007, aos 70 anos.

 

 

 

Últimas notícias