Tropicália 50 anos

Tropicalismo: e ninguém estava entendendo nada

Sem lenço, sem documento, significaria "sem LSD?

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 08/07/2018 às 10:16
foto: Reprodução/programa Divino Maravilhoso, da TV Tupi
Sem lenço, sem documento, significaria "sem LSD? - FOTO: foto: Reprodução/programa Divino Maravilhoso, da TV Tupi
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O Brasil ainda se esforçava para assimilar a bossa nova, recheada de dissonâncias, mas com melodias e letras acessíveis, quando surgiu Caetano Veloso cantando um canção cuja letra não tinha precedentes. A maior parte das pessoas que escutava Alegria, Alegria não sabia o que o compositor pretendia dizer com aquelas colagens de versos fragmentados. Os jornalistas, aos quais cabia a função social de analisar discos, a fim de que os leitores, supostamente leigos, entendessem obras complexas como a do jovem cantor baiano, também não.

  As canções do tropicalismo pegaram de surpresa críticos, articulistas, e redatores de editoriais, muitos deles, desconhecedores da nova cultura pop consumida na América do Norte e Europa. No início de 1968, Alegria, Alegria de Caetano Veloso era um dos compactos mais vendidos. Em Pernambuco, onde a palavra “tropicalismo” geralmente remetia ao sociólogo Gilberto Freyre, que escrevia sobre o comportamento dos habitantes dos trópicos desde os anos 1930, o jornalistas eram levados a interpretações que só dificultavam que o leitor entendesse as canções de Caetano Veloso (e de Gilberto Gil).

 Na maioria das vezes, não se fazia distinção entre tropicalismo e psicodelia, e os tropicalistas quase sempre recebiam o adjetivo de “hippies”. Assim como psicodelia, hippie também era uma palavra recente. Com o título Psicodelia e Hippies – Introdução à Música Psicodélica, no Jornal do Commercio, um artigo, assinado por Rossini Lyra, repetia o que na Inglaterra aconteceu com a canção Lucy in the Sky with Diamonds. Lá, alguém achou que o título se referia às iniciais do ácido lisérgico: Lucy – Sky – Diamonds, ou seja, LSD. Até a morte, John Lennon garantia que havia se inspirado num desenho feito por Julian, seu filho, para compor a música.

 O articulista no JC concluiu que “sem lenço, sem documento”, seria uma citação disfarçada à LSD: “Deparo-me com a música de Caetano Veloso, Alegria, Alegria, e chego à conclusão de que a obra do notável baiano encerra um pouco de psicodelismo, moderna filosofia da juventude (sempre sadia), irmanada ao hippismo, transfiguração ou transplante da escola filosófica de Epicuro, mestre da escola grega, a que emprestou, logicamente o nome.

 Em Alegria, Alegria, encontramos a frase musical ‘sem lenço, sem documento’, que não é senão ‘sem LSD’. Mais adiante, diz a música noutra frase ‘os olhos cheio de cores’, que se liga ao LSD, que cria alucinações temporárias, revelando um mundo de cores e formas indefinidas. Caetano Veloso em sua genial obra experimentou, com ou sem efeito o LSD-25. O que Caetano viu em Alegria, Alegria foi, como já o afirmamos, alucinações sem dimensão de tempo e espaço, mergulhado no mundo de sensações extrassensoriais, e ele se entorpeceu com as maravilhas das sedimentações psicossomáticas de extravagâncias rutilantes que a droga suscita na criação de um mundo de cores e linda simetria”.

 Os novos modelos de comportamento da juventude, na América do Norte e Europa, ainda não tinham aportado no Brasil de 1967. Na imprensa, as referências a alucinógenos e a comunas hippies de San Francisco vinham geralmente de agências de notícias. Cabelos longos continuavam sendo motivo para repressão, sobretudo numa cidade reconhecidamente conservadora feito o Recife, onde um titular da delegacia de acidentes sugeria que cabeludos fossem proibidos de dirigir táxis, para evitar acidentes.

 “Demasiado amor e pouco banho está matando os hippies de hepatite” era o título de uma matéria no Jornal do Commercio, em 14 de agosto, de 1968, de agência de notícias. Na capital pernambucana, a perplexidade diante de mudanças tão rápidas quanto radicais inspirou muita gente a escrever nos jornais sobre o fenômeno comportamental, feito fez Adilson Cardoso, no  JC, em 14 de julho de 1968, num artigo intitulado A Originalidade dos Hippies e a Imitação Tropicalista. Merece ser transcrito:

 “Os hippies foram originais, mas o tropicalismo de Caetano Veloso, não. O tropicalismo de quem muita gente falou, mas não surtiu efeito nenhum, procurou suas bases nos hippies note-americanos. De brasileiro só tem mesmo a propaganda das cores verde-amarelo e assim porque está na bandeira nacional. As músicas que fizeram o sucesso, como aquela que faz publicidade de uma conhecida marca de refrigerante, talvez a única peça tropicalista original. O mais, como os desenhos na capa do disco Tropicália, de Caetano Veloso, tudo veio dos hippies, até mesmo o seu cabelo descuidado”.

 A CRÍTICA

 No Recife os dois principal jornais, Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco, tinham opinões e interpretações divergentes sobre a Tropicália. No JC, o crítico de arte Celso Marconi, com eventuais colaborações de Jomard Muniz de Brito, era assumidamente a favor, até porque os dois integravam as hostes da vertente tropicalista pernambucana. Na outra trincheira, estava o DP, com o crítico Sergio Nona (como se assinava Fernando Spencer enquanto crítico musical) que não aprovava o tropicalismo.

 Ao comentar o álbum Panis et Circensis,Nona  o compara ao tropicalismo que foi deflagrado no Recife, assinalando contradições entre um e outro. “Onde a instauração de novos processos criativos, quando Caetano Veloso com sua voz fraquinha canta Coração Materno, de Vicente Celestino? Que processos novos criativos no bolero, cantando por Nara Leão, intitulado de Lindonéia, em Geléia Geral de Gilberto Gil e Torquato Neto, e o cha-cha-chá Tres Carabelas, de Gil e Caetano?”.  Nona sai defenestrando o disco, que é considerado como o manifesto sonoro do tropicalismo, sendo implacável com Bat Macumba: “... Rigorosamente, não tem letra. É uma coisa horrível, aproveitando apenas o ritmo africano”. Livra a cara dos maestros arranjadores, e de algumas faixas, entre elas Baby, de Caetano, e Miserere Nobis, de Gil e Capinan, até que conclui:

 “É lamentável que os dois jovens baianos trocassem a arte de fazer boa música pelo faturamento puro e simples, a pretexto da busca do som universal e outros slogans puramente de cavação”.

Pernambucano, recém-chegado no Rio, Aguinaldo Silva, 23 anos, trata os tropicalistas como “Banana Boys” quando escreve no Diário de Notícias. Diz que o que eles estavam fazendo Oswaldo de Andrade fizera nos anos 1930. Comentava que ele, Agnaldo, escrevera um livro (Canção de Sangue) em seis meses e ganhou 3 mil cruzeiros novos num ano, enquanto Caetano Veloso deveria ter composto Alegria, Alegria em meia hora numa mesa de bar e estava faturando 30 mil de cruzeiros novos por mês.

 As pessoas tentavam entender, jornalistas tentavam explicar. O apresentador Flávio Cavalcanti, no Diário de Notícias, resumia o que achava da Tropicália: “... O poeta baiano visualizou uma verdade, mas me parece que ainda não conseguiu se expressar completamente. Vamos esperar”. Até Nelson Motta, um apologista do tropicalismo e quase um tropicalista, alfineta os caminhos tomados pelo movimento. O colunista Hli Halfoun, no Diário de Notícias, perguntou a Motta: “Como colocar no mesmo movimento, Dercy Gonçalves, Chacrinha e Oswald de Andrade?”. A resposta: “Cada macaco no seu galho”.

 Em janeiro de 1969, com os líderes do tropicalismo presos e o movimento terminado (embora não seus efeitos), ainda se tentava explicar a Tropicália nos jornais, com o fez o Ney Machado, no Diário de Notícias: “O tropicalismo de Caetano é apenas uma forma subdesenvolvida de protesto contra a forma clássica da literatura, da música e da poesia (...) – principalmente pelos aderentes e pela inexistência de qualquer base cultural, o nosso protesto não cria raízes. Meses antes, no Recife, Caetano, quando mais uma vez lhe pediram para esclarecer do que se tratava o tropicalismo, saiu-se com esta. Contou uma hoje esquecida  piada que dá Kruschev (o premier russo) como crítico da forma liberal como se encontrava Cuba, logo depois da revolução. Fidel Castro teria aceitado as críticas e convocado um imenso comício para transmiti-las ao povo. “Do palanque, o Comandante diz que é preciso acabar com aquela mania de se viver cantando e dançando, e afirma: ‘Abajo la cucaracha, abajo la cucaracha, abajo la cucaracha, abajo la cucaracha’. Na terceira vez, já toda a praça repetia o slogan, no ritmo, e dançando”. Para o cantor baiano, nessa piada estaria a essência do tropicalismo – outra forma com que definiu o movimento foi com uma imagem singela: um sapoti bem maduro.

 

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