Bossa Nova/Memória

Bossa nova chega aos 60 anos desprestigiada no Brasil

Chega de saudade foi gravada por João Gilberto em julho de 1958

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 10/07/2018 às 13:36
Foto: Divulgação
Chega de saudade foi gravada por João Gilberto em julho de 1958 - FOTO: Foto: Divulgação
Leitura:

“É a primeira vez na vida que gravo um ventríloquo”, teria comentado um técnico do estúdio da Odeon durante uma sessão de gravação com um desconhecido cantor baiano, no dia 10 de julho de 1958. O cantor era João Gilberto, a música era Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Ali nascia a bossa nova. Há quem considere que a BN nasceu com o álbum Canção do Amor Demais, gravado em abril de 1958, e lançado no mês seguinte. Numa das faixas do disco, a mesma Chega de Saudade, originalmente um chorinho, João Gilberto apresenta pela primeira vez em disco a batida de violão que mudaria os caminhos da música popular brasileira.

Outros cantores arvoraram-se a criadores da bossa nova. Tito Madi foi um deles. “Talvez tenha sido eu que um dos que iniciaram em 1955, esta maneira de cantar baixinho, e falando”, disse Madi, numa entrevista à revista Radiolândia, quando João Gilberto chegou ao topo das paradas de sucesso, em 1959. Foi uma escalada veloz: o 78 rotações com Chega de Saudade e Bim-Bom Bom (João Gilberto) só foi lançado em outubro, causando um impacto impossível de ser mensurado seis décadas depois. Aquele samba de andamento diferente alterou o curso de muitos jovens cujo ideal era conseguir ingressar na universidade, o sonho da classe média.

Caetano Veloso tinha 17 anos e morava em Santo Amaro quando escutou João Gilberto. Foi-lhe apresentado por um amigo com um comentário que ele cita no autobiográfico Verdade Tropical: “Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. Ele confessa que foi arrebatado pela bossa nova, pela “batida de violão mecanicamente simples, mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico-poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio”.

João Gilberto inovou não apenas na forma de cantar samba como também no papel do artista. Até então se conhecia o cantor de rádio, aquele que gravava música de meio de ano, de carnaval ou até marchinha junina. Raramente tocavam se acompanhando e seguiam o que ensinava a cartilha: mandavam cartinhas aos fãs, tinham fã-clubes formado por mocinhas que se esgoelavam quando viam seus ídolos (que o pernambucano Nestor de Holanda as batizou de “macacas de auditório”). Uma parte menor dos cantores e cantoras exibiamse em clubes noturnos e boates para um público seleto, feito o citado Tito Madi ou Dick Farney. João Gilberto cantou também em auditórios de rádio e chegou a ter um programa de TV de pouca duração, mas não tinha contrato com nenhuma emissora quando estourou com Chega de Saudade, tornando-se um dos cantores que mais faturavam no país.

Era considerado ídolo da juventude, mas não apreciava que a faixa fosse tocada para casais dançarem como dançavam o twist, moda de então. Levava extremamente a sério sua música e revelava que passava a noite em claro ensaiando uma única canção: “Apenas procuro cantar sem prejudicar o sentido poético e musical das composições. É assim como tirar os excessos, seguir o curso natural das coisas, dar às notas um sentido tal que não prejudique o sentido da poesia, frisar aquelas palavras que têm a força poética. Tudo isso de modo a não deixar o ouvinte desinteressar-se pelo sentido daquilo que se canta”, explicou-se numa entrevista em novembro de 1959, uma rara oportunidade em que revelou a técnica que empregava para fazer revolução.

Esforçava-se para que sua individualidade aparecesse o mínimo possível e para que o ouvinte apreciasse a composição, a letra, a música e o sentimento que o compositor desejava transmitir. Procurava casar as palavras com o acorde, e a voz também fazia a vez do instrumento, caminhando junto com ele. “Procuro que a voz saia idêntica, brandamente, com naturalidade, sem esforço artificial”, resumiu. Ou seja, o que ele criou foi uma maneira nova, pessoal, de cantar samba, que se entendeu por interpretar pianinho, suavemente, de maneira coloquial. As sutilezas da batida do violão e da divisão de frases foram deixadas de lado. A forma em vez do conteúdo.

DESAFINADO

Chega de Saudade seria facilmente assimilada e cantada país afora, embora ainda duramente criticada, pelo seu intérprete “sem voz”. Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça, causaria polêmica pela autocomiseração na letra, que é considerada um manifesto da bossa nova. Um cantor admitindo-se desafinado só se conhecia na música de humor. Adelino Moreira, fornecedor de doridos sambas-canção para Nelson Gonçalves e Ângela Maria, compôs uma provocação a Desafinado em Seresta Moderna, samba gravado por Nelson: “Um gaiato cantando sem voz/ um samba sem graça/ desafinado que só vendo/ e as meninas de copo na mão/ fingindo entender/ mas na verdade, nada entendendo”. Seresta Moderna, de 1962, hoje está datada e esquecida. Chega de Saudade, três anos mais nova, tem o mesmo frescor do ano em que foi lançada. João Gilberto virou assunto para jornalismo de resultados, de um país cuja música popular nega e se afasta, cada vez mais, da revolução que ele deflagrou há seis décadas.

Últimas notícias