Tropicália 50 anos

Tropicalistas fizeram música com a urgência que momento pedia

Uma discografia transgressora, porém com altos e baixos

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 22/07/2018 às 9:41
Foto: do Programa Divino Maravilhoso
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A guitarra, cuja utilização no III Festival da TV Record foi o estopim da bomba que abalou o alicerce da MPB, tem participação até moderada na maioria da música tropicalista. Ela é apenas pressentida no álbum tropicalista de Nara Leão. Não fosse pela produção de Manuel Barebein e arranjos de Rogério Duprat, seria um disco “convencional” da cantora carioca. Seu LP de 1968 vai da modinha imperial a três composições de Caetano Veloso. Lindoneia (com Gil) e Mamãe Coragem e Deus vos Salve esta Casa Santa (ambas com Torquato Neto).

 Caetano, Gilberto Gil, Os Mutantes, a coletânea Tropicália ou Panis et Circensis, o citado de Nara Leão, todos estampam o selo da Philips na capa. A exceção foi Tom Zé, que gravou pela pernambucana Rozenblit. Dois dos conjuntos que participaram da epopeia tropicalista, Os Brasões e The Beat Boys, lançaram discos em 1968, embora não se encaixem na estética do movimento. Gal Costa só lançaria seu álbum tropicalista em 1969 (na verdade dois no mesmo ano).

 Quando estes discos foram produzidos, o que se convencionou chamar de Tropicália ainda era muito recente, a poeira ainda não tinha baixado, a maioria das canções foi composta no calor da luta. Algumas reaproveitadas e moldadas ao estilo tropicalista, caso de Coragem pra Suportar, faixa do LP de 1968, de Gilberto Gil, pinçada do musical Arena Conta Bahia, de 1965. Gil ainda reprocessou Procissão, com os Mutantes.

 Caetano Veloso relata em detalhes, no livro Verdade Tropical, a feitura do seu disco de 1968, enfatizando uma música que não entrou no repertório, Dora, de Dorival Caymmi. “Dora tinha sido a escolhida porque, mantendo o contraste desejado, esse samba-canção de tom algo épico e distanciado (os clarins da banda militar, tocam para anunciar/ sua Dora agora vai passar/venham ver o que é bom) subrepticiamente confirmava as escolhas estéticas do disco”.

Dori Caymmi, que arranjara o LP Domingo, de Caetano e Gal Costa, no início de 1967, foi para São Paulo convidado a escrever o arranjo de Dora. Considerado o melhor arranjador de sua geração, excepcional violonista, em Sampa, alguma coisa aconteceu no coração do filho de Dorival. Caetano pretendia uma versão de voz e violão. Mas Dori, segundo ele, criou mil dificuldades no estúdio. Chegou ao ponto de se desculpar por não lembrar a harmonia. Não conseguiram gravar nem uma versão completa. Dori acabou indo embora, dizendo que não dava pra fazer.

 Em suas memórias, Caetano sugere que, embora aceitando o convite, Dori fazia parte da turma emepebista, da ala que considerava os baianos traidores da música popular brasileira autêntica. Em lugar de Dora entrou Clarice (parceria com Capinan), por insistência do produtor Manoel Barembein. A música, embora de bela melodia, e refinado lirismo, ou talvez por isso mesmo, destoava do tom do álbum. Foi a concessão no repertório, e uma das canções menos conhecidas de Caetano. Como curiosidade: ele usa passagens da melodia de Clarice numa “incelença”, que canta no filme Proezas de Satanás na Ilha de Leva-e-traz, de 1967, no qual também atua.

INSATISFAÇÃO

 O único álbum tropicalista de Caetano Veloso ficou muito aquém das ideias que maquinara, até porque os estúdios brasileiros eram, naquela época, extremamente defasados em relação aos congêneres americano ou europeus. Não apenas deficiências técnicas. Superbacana, uma das faixas que tocaram bastante no rádio, ficou datada, com citações a produtos que saíram do mercado há décadas, a exemplo do Superflit (um inseticida), ou o breque em que diz “Um instante maestro”. Este um bordão do apresentador Flávio Cavalcanti, que apresentava um programa homônimo, de grande audiência, na TV Tupi. Cavalcanti costumava quebrar, diante das câmeras, discos com músicas que não aprovava.

MANIFESTO

 “Não importa neste disco examinar faixa por faixa. É preciso entender sua mensagem global, antes de mais nada. Sua tentativa de pôr em questão as perspectivas da arte brasileira em 1968. Na música popular, é um irmão legítimo do cinema de Glauber Rocha e do teatro de José Celso Martinez”, escreveu o jornalista e escritor Luiz Carlos Maciel, no Correio da Manhã, sobre o álbum Tropicália ou Panis et Circenses, o chamado disco manifesto do movimento tropicalista, produzido por Manuel Barenbein, com arranjos e regência do maestro Rogério Duprat.

 A título de curiosidade, na mesma página, ao lado do artigo de Maciel, há uma nota sobre uma peça do maestro Marlos Nobre, Tropicale. Op 30, que foi apresentada naquela semana, pela primeira vez em publico, em Nova Iorque. Tropicale teve inspiração na Tropicália. Marlos Nobre, por sinal, escreveu música para o filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, de 1969. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão, Gal Costa e os Mutantes são os intérpretes no disco. Tom Zé entra com Parque Industrial, cantado por Caetano, Gil, Gal e Mutantes.

 Exatamente como Maciel sublinha, o disco precisa ser analisado no todo, é um trabalho conceitual. As canções formam um mosaico em que figuram as várias facetas do Brasil. A capa, assinada por Rubem Gerchman, é uma óbvia referencia ao Sgt Pepper’s dos Beatles, devidamente tropicalizado. Conseguiu-se abrigar todos os tropicalistas numa única foto, José Carlos Capinan e Nara Leão, em retratos emoldurados. Rogério Duprat reverencia Marcel Duchamps segurando um penico como se fosse uma xícara. A artista plástica carioca Regina Fater criou uma capa para o disco, que acabou sendo preterida.

 Um trabalho que supera as deficiências técnicas, pela maneira inteligente como se dispôs o repertório. A atualização de Lobo Bobo (Bôscoli/Menescal), em Enquanto seu Lobo não Vem (Caetano Veloso), o aceno aos concretistas em Batmacumba (Caetano Veloso), a religiosidade brasileira no Hino do Senhor do Bomfim, e o Modernismo de 22, atrelado ao tropicalismo de 68, em Geleia geral, de Gil e Torquato, pra muita gente a mais perfeita canção do período. Nara Leão em Lindoneia, meta-bolero de Caetano Veloso, a garota Baby, na versão que Geraldo Vandré não aprovou, a brechtiania.

 Mamãe Coragem, com Gal, não mais, definitivamente, Gracinha ou Gau, de Salvador. A alegórica e épica reinterpretação de Caetano em Coração Materno, a opereta do tenor Vicente Celestino, que não resistiu a tantas e tão drásticas mudanças e teve um infarto pouco antes de sua participação na edição natalina do efêmero programa Divino Maravilhoso. Um disco que demorou a ser devidamente digerido.

 Isolando-se as partes do todo, Tropicália ou Panis et Circensis é um trabalho irregular. Músicas que se destacam de outras, descontextualizado, O Hino do Senhor do Bonfim torna-se elemento meramente decorativo. O LP não vendeu bem, suas canções receberam poucas regravações. Baby é a faixa mais conhecida, seguida por Panis et Circensis, com os Mutantes, mesmo assim só depois que o grupo foi redescoberto no início do século 21, quando o Tropicalismo obteve reconhecimento internacional.

 Tom Zé pegou o trem da Tropicália já nos trilhos e veloz. Veio da Bahia, trazido por Caetano Veloso, para reforçar as hostes do movimento. Influenciado pelo consumismo do paulistano. fez (na Rozenblit) um álbum conceitual, crônicas de costumes da maior metrópole do País. Os títulos das canções explicitam a temática, Curso Intensivo de Boas Maneiras, Sem Entrada Sem Mais Nada, Catecismo, Creme Dental e Eu. Destacaram-se São São Paulo, que venceu o festival de MPB da TV Record em 1968, e Parque Industrial. Não é o melhor disco de Tom Zé, ele se adapta à estética tropicalista, e cerceia muito da sua inquietação e impulso transgressor, que volta a ser exercido a partir do disco seguinte, Tom Zé (1970).

 Tom Zé parece se identificar mais com a juvenilidade e o empirismo dos Mutantes. Foi parceiro do grupo em Qualquer Bobagem, com Rita Lee, em 2001. Arnaldo, Sergio e Rita Lee eram, para usar a expressão de Gilberto Freyre, anarquistas construtivos, um rótulo que se encaixa em Tom Zé, sobretudo pelo que vem criando nos últimos 20 anos. Não por acaso, ele e os Mutantes estão entre as principais influências dos músicos do século 21.

 “Entre a brasa da Jovem Guarda acesa por Roberto Carlos no meio dos anos 60 e a fagulha da Blitz da geração dos anos 80, um cometa loucura riscou o céu da MPB com uma eletrostática de combustão própria”, pontuou o crítico Tárik de Souza no prefácio do livro A Divina Comédia dos Mutantes, minuciosa biografia de Carlos Carlos (Editora 34). Os Mutantes foram para o rock nacional, então chamado de iê-iê-iê, o que a Tropicália foi para a MPB. Depois do primeiro álbum do trio, nada foi como antes nas hostes roqueiras. Arnaldo, Rita e Sergio (depois Dinho e Liminha) não copiavam o que se fazia lá fora. Eram contemporâneos. Abrem o LP com Panis et Circensis (Caetano/Gil) com a vinheta de abertura do Repórter Esso (o Jornal Nacional da época), empregam trompetes à Penny Lane, dos Beatles, de repente um fade-out, efeito que levava as pessoas a achar que tivesse faltado energia, falas no meio da canção.

 Só esta faixa já escancara a defasagem em que se encontrava o iê-iê-iê. O disco mais bem-resolvido da Tropicália (tem participação especial de Jorge Ben, e de Clarisse Leite (ao piano), mãe de Sérgio e Arnaldo. Ressalte-se que o guitarrista Sergio Baptista ainda era adolescente, enquanto Rita e Arnaldo mal tinham entrado nos 20 anos.

 Numa entrevista de 2017, a um jornal da Bahia, Gilberto Gil estima a duração da Tropicália em três anos, ou seja, teria terminado entre 1970 ou 1971 (dependendo de ode se estabeleça seu início, se 1967 ou 1968). Pelo menos para Gal Costa foi assim. Metamorfoseada em 1968, deixou para trás a meiga Gracinha, renascida na super Gal Costa. Porém só gravaria seus álbuns tropicalistas em 1969, logo dois, ambos com seu o nome por título. Pode-se considerar Legal, de 1970, ainda um disco tropicalista, inclusive tem capa de Hélio Oiticica. É a fase mais Janis Joplin, mais roqueira de Gal Costa, musa da contracultura, ou udigrudi, nacional.

 São discos feitos quando a estética tropicalista já estava definida. Gal vai do telúrico Luiz Gonzaga, Acauã (com Zé Dantas), ao experimental Jards Macalé, Pulsars e Quasars (com Capinan). Privilegia Roberto e Erasmo, que compuseram pra ela, Meu nome é Gal, cartão de visitas, que ela ainda hoje inclui no repertório de shows (regravada para Gal Tropical, de 1979, em que dialoga com a guitarra de Robertinho do Recife). Esta fase, digamos, alternativa de Gal vai até 1973, com Índia. É encerrada, por ela, Gil e Caetano no álbum Temporada de Verão, de 1974.

 Aos poucos todos (menos Tom Zé) vão se tornando mainstream, astros de uma MPB renovada por eles mesmos. Não há música tropicalista. Há uma sonoridade tropicalista em parte dos discos do movimento graças aos arranjos dos maestros que trabalharam neles. O que liga uns aos outros é ausência de um limite. Qualquer um poderia ir até onde quisesse.

 OUTROS

 Jorge Ben (bem antes do “Jor”) se integrou naturalmente à turma tropicalista, sem ser exatamente tropicalista. Ou melhor, era tropicalista antes do tropicalismo. Contratado por Guilherme Araújo ele foi inserido no contexto da Tropicália, participou do programa Divino Maravilhoso, fez, em 1969, um estupendo álbum de viés tropicalistas, mas logo seguiria seu curso..

 Maria Bethânia não se assumiria tropicalista. Mas era abertamente simpatizante. Sem se engajar no movimento, provavelmente pelos atritos com Guilherme, a quem aplicou uma sova, em 1966. No show e disco Recital no Teatro Barroco (1968) o conceito é claramente tropicalista, ao modo de Bethânia. Abre o repertório com Marginália II (Gilberto Gil/Torquato Neto). Canta Noel Rosa, Dorival Caymmi, Assis Valente, Meira, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Pixinguinha, com canções recentes da Tropicália, Pé da Roseira, Ele falava nisso todo dia (Gil) e, Baby (Caetano).

Embora não chegue a ser exatamente tropicalista, Momento Quatro, LP do grupo homônimo, é o primeiro trabalho já inspirado pelo movimento. Formado por Ricardo Vilas, David Tygel, Maurício Maestro e José Rodrigues (mais tarde Zé Rodrix), então na faixa dos 20 anos (Vilas estava com 19). O disco tem arranjos dos maestros que trabalhavam com os tropicalists, Rogério Duprat e Damiano Cozzella.

 Uma das faixas do álbum é Ele falava nisso todo dia, de Gilberto Gil. O quarteto é dos primeiros a gravar Milton Nascimento. Nos arranjos e instrumentos (também usam guitarras), o grupo já não se encaixa na MPB tradicional, embora tenha participado, em 1967, com o Quarteto Novo, da apresentação de Ponteio, de Edu Lobo e Capinan, vencedora do III Festival da MPB da TV Record.

 

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