Memória/Tropicália 50 anos

Tropicália: paixão, vida e morte, ou seja marginal, seja herói

Os tropicalistas radicalizaram no palco e na televisão

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 29/07/2018 às 11:24
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Os tropicalistas radicalizaram no palco e na televisão - FOTO: Foto: reprodução
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“Esta badalação promocional de goiabada cascão e terno de linho branco vai cair na roda viva do consumo e virar produto a ser consumido nas butiques granfinoides”,comentário do jornalista Ruy Castro, ao jornal carioca O Globo, em março de 1968, quando a Tropicália explodia no sol e nos cinco sentidos na Zona Sul do Rio. Em fevereiro, a Banda de Ipanema, que congregava artistas e intelectuais, boa parte dos foliões do festivo bairro que lhe dava o nome, saiu às ruas no “mais puro estilo Tropicália”, um estilo que pouco tinha a ver com Caetano Veloso, Gilberto e os demais tropicalistas.

 Em 1968, tropicalismo tornou-se palavra-Bombril, com mil e uma utilidades. Inevitável que fosse apropriado pela publicidade, assim como as manifestações da época. Uma publicidade do detergente ODD mostra jovens donas de casa e os dizeres: “Guerra total contra a sujeira”, “Passeata a favor de ODD”. Duas moças seguram cartazes cujas questões de ordem são: “Chega de opressão” e Gordura não, ODD sim”. Como o tropicalismo foi rápido, em março de 1968, num anúncio de uma poltrona, lê-se no início da legenda: “Verde e amarelo não é só tropicalismo. É também um casamento harmonioso, principalmente quando realizado com um tecido feito este”. Enquanto isso, em Sergipe, autoridades sanitárias tranquilizavam a população, garantindo que a gripe que assolava Aracaju não era a terrível Hong Kong, que estava matando pessoas no Oriente, mas a gripe Tropicália, menos perigosa.

 O movimento, quem diria, acabou no teatro de revista, ou teatro rebolado, como chamava um dos cronistas mais lidos do país, Sergio Porto, ou Stanislaw Ponte Preta (que morreu em 1968). No Teatro Carlos Gomes, Jorge Murad e Nilza Magalhães assinavam o musical A Nega Tá Lá Dentro, que nos anúncios enfatizava: “Não percam a sensacional revista Tropicália. Lindas vedetes, originais strip teasers, um turbilhão de gargalhadas, 30 modelos ... tropicalíssimos”. Enquanto isso os tropicalista tornavam-se cada vez mais ousados, cutucavam a onça com vara curta, sem atentar que a luz no fim do túnel estava quase se apagando.

Depois de ganhar uma queda da braço com a censura federal, que lhe impôs 71 cortes no texto, a peça I Feira Paulista de Opinião, com seis textos de autores como Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, foi liberada, e encenada no Teatro Rute Escobar, em São Paulo. No início da temporada, sete ampolas de gás lacrimogêneo obrigaram os atores a interromperem a apresentação, fazendo o público abandonar às pressas o teatro. Dali a quatro meses o ministro da Justiça, Gama e Silva lançaria o AI-5 sobre os brasileiros.

 “Alô, mulatas! Alô, alô, mulatas! O barulho que vocês estão ouvindo é um barulho de latas! De latas! Eu disse: Latas! Latas!”, a abertura de A Luta Contra a Lata ou a Falência do Café é de Gilberto Gil, imitando Chacrinha. A música já é posterior aos álbuns que os tropicalistas lançaram em 1968. Foi lançada num compacto duplo, com Questão de ordem, Bat Macumba e Miserere Nobis. Caetano Veloso mandaria para a I Bienal do Samba, da TV Record, uma de suas mais emblemáticas composições do período, A Voz do Morto.

 A música, que seria gravada por Araci de Almeida, criava uma nova categoria no gênero, o samba provocação. Uma letra que é primor de ironia, uma colagem de citações, implícitas e explícitas. A começar pelo título da música, uma paráfrase, ou paródia mesmo, de A Voz do Morro, clássico de Zé Keti (de 1956) e Na Glória, samba de gafieira de Raul de Barros e Ari dos Santos (1959). E ninguém mais apropriada para cantar este samba do que Aracy de Almeida, a intérprete de Noel Rosa, compositor que reinventou e trouxe o samba para o asfalto, e para o aconchego da classe média. Uma das composições menos conhecidas não apenas de Caetano Veloso, mas do tropicalismo, A Voz do Morto teve pouquíssimas regravações, uma das poucas foi realizada por Geraldo Azevedo, em 1991, no disco do projeto Luz do Solo. Em compensação, foi ponto de partida para o jornalista Pedro Alexandre Sanchez escrever “A Decadência Bonita do Samba”, dissertação de mestrado que virou livro.

MOMENTO

 Uma música de confronto da mesma época de Proibido Proibir. Um confronto que apontava para um desfecho imprevisível, não apenas dos tropicalistas, mas da sociedade. Estudantes saíram em massas pelas ruas do país pedindo liberdade, o fim da ditadura, marchando entre nuvens de gás lacrimogêneo e golpes de cassetetes. “Na época de 67, 68 a gente tinha muita reunião de artistas, teatro cinema, jornalistas, participávamos de assembleias e passeatas. Ao mesmo tempo, eu estava na universidade e tinha uma certa liderança no movimento estudantil. Com o AI-5, a repressão foi se radicalizando, tornando-se mais violenta, menos formas de luta se mostraram possíveis dentro de uma relativa legalidade. Eu participava de uma organização de esquerda, então radicalizei minha participação também. Fui preso porque ia fazer uma panfletagem diante de uma fábrica, num primeiro de maio”, relembra o músico carioca Ricardo Vilas.

 Em 1968, ele integrava o grupo Momento Quatro, com Maurício Maestro, David Tygel, e Zé Rodrix. Em 1967, o Momento Quatro e o Trio Marayá ajudaram a Edu Lobo vencer, com Ponteio, o III Festival de Música Popular da TV Record. Edu era da ala nacionalista da MPB. Os integrantes do Momento Quatro, lembra Ricardo Vilas, na época com 18 anos, se identificavam também com os tropicalistas. O MQ foi provavelmente o primeiro grupo influenciado pelo tropicalismo. Logo estariam usando guitarra elétrica e, em seu disco de estreia, de 1968, cantam Ele Falava Nisso Todo Dia, de Gilberto Gil: “Quando fomos defender Ponteio com Edu Lobo, ficamos no mesmo hotel em que Gilberto Gil estava hospedado com Os Mutantes. Eles ensaiavam no quarto, tocavam Beatles e a gente, que também gostava dos Beatles os ouvíamos. Era um momento em que se debatia se o rock era brasileiro ou não era, se podia ter pop na música brasileira, os radicais defendiam que a brasilidade era o samba a música do Nordeste. Ponteio representava um pouco esta vertente de guardar esta brasilidade em oposição ao pop do tropicalismo. Do outro lado tinha aqueles mais libertários da Tropicália. No entanto, a atração que toda aquela proposta de abertura que a Tropicália defendia nos atraía muito”, comenta Ricardo Vilas.

 O Momento Quatro desfez-se com a prisão de Vilas, que ficou detido até o ano seguinte, quando foi um dos 15 presos trocados pela libertação do embaixador americano Burke Elbrick, sequestrado por guerrilheiros quando a luta armada contra a ditadura se instalara no Brasil.

CARA DE CAVALO

 Enquanto o pau cantava amplo, geral e irrestrito na principais cidades brasileiras, os Beatles estavam estourados nas paradas com um rock básico e barulhento – Revolution – e desembarcava em São Paulo o ex-guru do quarteto inglês, o indiano Maharishi Mahesh Yogi. “Sobre a guerra no mundo explicou tratar-se de produto de acúmulo de tensões na atmosfera individual e que quando se atinge a plenitude espiritual, a paz interior – explicou – a guerra já não mais existe”. O Maharashi Mahesh Yogi falou sobre meditação transcendental no auditório da Folha de S. Paulo, com os parceiros Roberto e Erasmo Carlos na plateia. Os tropicalistas não tinham muito tempo para gurus.

 Ironicamente, o principal adversário da Tropicália nas hostes dos nacionalistas, o paraibano Geraldo Vandré, peitava ainda mais radicalmente os militares. Seu radicalismo não era estético, era na letra de Caminhando (para não dizer que não falei de flores), tão simples que se aproximava do minimalismo. Vandré valia-se de uma letra longa, mas de apenas dois acordes – Fá sustenido e mi maior – e um refrão fácil, com uma frase de efeito (“Quem sabe faz a hora não espera acontecer”). A meteorologia previa tempo ruim, nuvens plúmbeas estendiam-se por todo o país.

 O jornal O Globo, de 2 de outubro, anunciava que o próximo show da boate Sucata seria de Caetano Veloso. O lugar tornara-se o preferido das estrelas da MPB. O programa Divino Maravilhoso, na TV Tupi, teve cinco edições (de outubro a dezembro de 1968), dos quais só restam fotografias (os tapes teriam sido apagados para evitar que caíssem nas mãos da polícia do regime). Os tropicalistas imprimiram ao programa, dirigido por Fernando Faro e Antonio Abujamra, influências de o Rei da Vela, a peça de Oswald de Andrade, dirigida por Zé Celso Martinez, e Terra em transe, de Glauber Rocha, condensadas em uma hora de imagens até então impensáveis na TV brasileira. Uma delas chocou telespectadores: Caetano Veloso cantando Boas Festas (Assis Valente) com um revólver apontado para a plateia (e não para a própria cabeça, como está nos livros sobre a Tropicália).Em um dos programas houve até um enterro simulado do movimento. O mês de outubro de 1968 foi decisivo para o tropicalismo.

Manoel Moreira, vulgo Cara de Cavalo, é um bandido mítico na galeria da marginália carioca. Foi morto em 3 de outubro de 1964 por policiais que vingaram a morte do também policial Milton Lecocq. Seu amigo, o artista plástico Hélio Oiticica criou uma instalação em sua homenagem e um poema-bandeira. Um retângulo de tecido no qual imprimiu a frase “Seja marginal Seja herói”. Uma réplica desta peça de Oiticica decorava o cenário da temporada, prevista para ter nove shows que Caetano Veloso, Gilberto Gil, os Mutantes e o roqueiro americano Johnny Dandurand iniciaram, em 4 de outubro, na Sucata, badalada casa noturna na Lagoa, Zona Sul carioca. O show assemelhava-se, em liberdade, ao programa Divino Maravilhoso, um happening.

 A temporada seria encerrada abruptamente depois do penúltimo show. Um promotor de justiça, Carlos Melo, foi assistir ao espetáculo, indignou-se com a frase no poema-bandeira e exigiu que fosse retirada. Ironicamente, o promotor interveio no show exatamente quando Caetano Veloso ia começar a cantar Proibido Proibir. Os músicos recusaram-se a fazê-lo. No dia 15 de outubro, a polícia interditou a Sucata, pertencente ao empresário Ricardo Amaral. No dia 27 de dezembro, 14 dias depois da decretação do Artigo Institucional nº5, Caetano Veloso e Gilberto Gil seriam presos em São Paulo.

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