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Olivia Hime reafirma o quanto podem ser belas as canções

Contra fel, moléstia, crime: Edu Lobo, Francis Hime, Dori Caymmi

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 03/11/2018 às 9:20
foto: Nana Moraes/Divulgação
Contra fel, moléstia, crime: Edu Lobo, Francis Hime, Dori Caymmi - FOTO: foto: Nana Moraes/Divulgação
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A música brasileira que atualmente é popular no País utiliza-se de poucos acordes, letras básicas, arranjos sem apuro, intérpretes de voz e aparência padronizadas. Uma espécie de minimalismo primitivo. Diante deles, a MPB que, até os anos 1990, tocava no rádio, em comparação, torna-se quase uma variante da música erudita, tal a dificuldade com que é assimilada pelos que estão de gosto embotado, habituados a sertanejos, forró fuleiragem e afins. No século 21, o domínio avassalador de subgênero da música pop rotulado de “sertanejo universitário” foi absorvendo cacoetes de outros gêneros, até predominar, sem rivais, implacável, no rádio, TV, e som ambiente de bares e restaurantes. Restaram poucos nichos de música de escopo mais complexo.

 Um destes é a gravadora Biscoito Fino, com um elenco invejável em qualidade, que em outros tempos só as multinacionais do disco tinham cacife para tê-los como contratados. Chico Buarque, Gal Costa, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Francis Hime, entre muitos outros. A gravadora não tem mais o mesmo pique de dez anos atrás, mas continua sendo referência e primando pelo requinte.

 É o que ratifica Olívia Hime, em seu 15º disco Espelho de Maria - Canções de Dori Caymmi, Edu Lobo e Francis Hime. Um álbum que não poderia ser mais refinado. Do conteúdo à capa e encarte em tons cinza, belas foto de Nana de Moraes, com idealização e direção artística da cantora. Com a carreira iniciada ainda na era dos festivais, Olivia Hime permaneceu nos bastidores, com eventuais incursões pelos palcos. Fez, por exemplo, backing vocals para Vinicius de Moraes, e produziu discos.

 Somente em 1981 lançou álbum de estreia (que tem seu nome por título), com composições de Francis Hime, Novelli e Cacaso, Milton Nascimento e Márcio Borges, ou dela própria, em parceria com Francis, com quem casou em 1969. Olivia entrou em cena trazendo mais do que a voz. Estudou piano com o maestro Moacir Santos, violão com Roberto Menescal, e flauta, nos Estados Unidos, onde o casal foi morar quando a barra pesou no começo dos anos 1970.

 É pois com o viés de instrumentista que Olivia Hime conduz este disco, que tem arranjos de Francis Hime, Dori Caymmi, Paulo Aragão e Jaime Alem, e composições de autores da segunda geração da bossa nova, Dori, Edu e Francis, também seus contemporâneos. Como intérprete, Olivia mantém carreira discreta, nunca foi de frequentar paradas, arrebatar multidões. Se não faz concessões, tampouco é de transgressões. É cantora de timbre elegante, e de extremo bom gosto no repertório. Não tem como errar convivendo e trabalhando cotidianamente com um compositor maior:

 “Há dois anos venho construindo a forma de Espelho de Maria, dando preferência às canções e tendo a sorte de ter Francis ao meu lado para traduzir musicalmente os caminhos que eu apontava”, admite.

SUÍTES

 Espelho de Maria é formado por módulos com composições de cada um dos três autores citados. Não como simples pot-pourri, mas uma trinca de suítes de estrutura quase erudita de câmera, com canções entremeadas por belos trechos instrumentais. Um conceito que Olivia Hime empregou em dois discos anteriores, Alta Madrugada (1997), e Mar de Algodão - As Marinhas de Caymmi (2001) que, por sua vez, foram inspirados, entre outros, em um disco conceitual de Frank Sinatra, In the Wee Small Hours, de 1955, um álbum de canções que têm a dor de cotovelo como pano de fundo. Na verdade, uma trilogia, com Where Are You? de 1957, e Frank Sinatra Sings for Only and Lonely, de 1958:

 “Imaginei três suítes e, ao convidar os arranjadores, pedi que se espalhassem no desenvolvimento orquestral. Pensei que seria interessante ir entrelaçando as músicas, umas nas outras, mas dando um sentido de unidade a cada movimento, ou momento”, escreveu Olivia Hime em texto do encarte do álbum Mar de Algodão”, uma ideia que ela torna a desenvolver em Espelho de Maria, que pode ser escutada também como se fosse uma sinfonia em três movimentos.

 O primeiro deles, Suíte Dori - Canções sem Fim, que agrupa doze composições de Dori Caymmi, entrelaçadas, e amarradas por Amazonas (parceria com Paulo César Pinheiro). Segue com a Suíte Edu - São Bonitas as Canções, tem abertura com três composições de Edu Lobo e parceiros (das várias fases e Edu, de Gianfrancesco Guarnieri a Vinicius de Moraes, Ruy Guerra e Chico Buarque), encerrando o álbum a Suíte Francis- Canções Apaixonada, com uma dezena de canções de Francis Hime (também com diversos parceiros).

 Tomando emprestadas as palavras do crítico Tárik de Souza, que assina o texto do encarte, e define o álbum: “Uma espécie de missão em defesa da canção”. Olivia Hime não tem pretensões de que um disco de tal nível vá tocar no rádio “Mas a gente tem a obrigação de cantar, porque esta é a futura música clássica. Muitas dessas canções serão eternas”, asserção corroborada nos versos de Canção sem Fim, de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro: “A canção jamais se acaba/ como nunca se acabou/ basta haver mulher e homem/ bem e mal, paixão e dor/ pois enquanto nasce gente/ vai haver canção de amor”.

 

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