Memória

Cafi foi o mestre das capas perfeitas

Ele tinha paixão pela cultura popular pernambucana

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 03/01/2019 às 7:58
Foto: Karina Hoover/Divulgação
Ele tinha paixão pela cultura popular pernambucana - FOTO: Foto: Karina Hoover/Divulgação
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Um lance de gênio. O fotógrafo encarregado de criar a capa para um álbum que Milton Nascimento gravara com Lô Borges passava de carro por uma estrada de barro, próxima ao sítio do compositor Ronaldo Bastos, no interior de Minas Gerais. Súbito se deparou com dois garotinhos, de cócoras, um negro e o outro, branco. Registrou a foto e ela foi aprovada pelos músicos. Não foi pela EMI, a gravadora. Impossível uma capa de disco sem título, sem nomes nem fotos dos artistas. Acabaram sendo convencidos.

 O autor da ousadia foi Carlos da Silva Assumpção Filho, Cafi, pernambucano do Recife, falecido, no Rio, de um infarto, na noite do revéillon, aos 68 anos. Cafi morava no Rio desde os 14 anos, mas Pernambuco continuou até o final da vida com ele. Apaixonado pela cultura popular do Estado, começou a fotografar maracatus rurais, cirandas, cavalos-marinhos, quando pouco se dava atenção a essas manifestações. Tornou-se famoso, no entanto, trabalhando para a indústria do disco. Uma arte em que se tornou um dos principais autores do país e que praticava como se fosse um trabalho artesanal.

 Fez a primeira capa aos 20 anos, para o LP É A Maior, da cantora Marlene. Estima-se que tenha feito mais de três centenas de capa, boa parte figurando entre as mais marcantes da música brasileira. São fotos desconcertantes, feito a do close do rosto de Milton Nascimento no álbum Minas (1975), para quem fez ainda Geraes (1976) e Milagre dos Peixes (1973). É dele a foto de uma ensimesmada Cassia Eller, no disco homônimo, de 1994, ou a de Francis Hime dando impressão de que pularia de um trem em movimento, no álbum Se Porém Fosse Portanto (1978).

 Logo depois de peitar a EMI com o disco Clube da Esquina (do qual se tornou um sócio emérito), ele voltou a preocupar os executivos da gravadora com a foto para a capa do álbum de Lô Borges: um par de tênis velhos. Detalhe: o disco de Lô Borges (que estreava solo aos 20 anos) foi feito quase que simultaneamente ao do Clube da Esquina. Para desespero da gravadora, o álbum também saiu sem foto, nem nome do artista. Apenas os tênis. Virou um clássico.

 Nos últimos dias de dezembro de 2018, Cafi trabalhava na capa do próximo disco de Jards Macalé. Em seu perfil no Facebook, Ronaldo Bastos postou a capa do Clube da Esquina, afirmando que vai deixá-la ali como homenagem ao fotógrafo, e comentou: “Cafi fica na história como um dos caras que melhor traduziu em artes visuais os discos do Brasil, acrescentando-lhes significados e sensações, sempre a uma distância inimaginável do óbvio”.

O livre trânsito que Cafi desfrutava entre artistas de vários nichos no Rio devia-se em parte à sua participação no coletivo Nuvem Cigana, que marcou época no Rio, incursionando por diversos campos: música, literatura, artes plásticas. Dele fizeram parte o citado Ronaldo Bastos (que levou Cafi ao Clube da Esquina) e o poeta Chacal, entre muitos outros. Muita gente passou pelo Nuvem Cigana, um escape para a criatividade no início dos anos 70, época de fechadura política e censura feroz. Uma história que foi contada no livro Nuvem Cigana – Poesia e Delírio no Rio dos Anos 70, de Sérgio Cohn, e no doc As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana, de Paola Vieira e Claudio Lobato (2016).

 O FILME

 “Acordei com a máscara de oxigênio caindo no meu rosto. A gente ia, num avião para Minas, continuar as filmagens do documentário que eu estava dirigindo sobre ele. Cafi estava com a gente. Não sei o que houve, sentia um cheiro forte de queimado, não sei se houve despressurização, sei que durou uns quatro minutos, o avião chegou se arrastando até o aeroporto de Belo Horizonte. Quando descemos, Cafi disse que dali em diante só viajaria de van”, conta Lírio Ferreira, que foi convidado para a direção do documentário Cafi, uma parceria com a produtora recifense Luni:

 “Tive o prazer de produzir o documentário sobre a sua vida e obra, de conviver e conhecer mais a sua história, seus amigos e suas reflexões. Foi uma grata surpresa pra mim cada dia dessa viagem, das novas paisagens que me mostrou, seus amigos e conhecer ainda mais a nossa família, de como estávamos ligados há muito tempo”, comentou, numa postagem, Karina Hoover, da Luni, também prima de Cafi.

 O filme, que tinha o título provisório de Salve o Prazer, deu os primeiros passos em 2017: “Logo depois de ser convidado, fizemos uma longa entrevista com Cafi, em Olinda, para servir de base para o roteiro. Cafi passava uma certa ansiedade para começar logo, não sei se aquilo era premonitório. Sei que viajamos muito juntos. Fizemos imagens em Olinda, no Recife, em Maria Farinha, uma praia de que ele gostava e sempre visitava. Gravamos na casa de Alceu Valença, um encontro dos dois. Daí fomos para o Rio, encontramos com Jards Macalé, com Ronaldo Bastos”, conta Lírio Ferreira.

 Foram ainda à BH, onde Cafi uniu-se aos companheiros de clube, que permanecem morando na cidade, com a obrigatória visita à casa dos Borges, para o reencontro com Lô. O filme (cujo título será Cafi)  está terminado, montado, mas talvez sofra modificações pela morte inesperada do protagonista: “Não sei se irão ser incluídas imagens do velório, por exemplo, creio que não. Talvez acrescente legendas no final. Pra mim uma coisa foi muito importante: Cafi viu o filme pronto, ficou muito feliz. Vamos agora ver quando poderemos lançar, creio que será neste primeiro semestre, com uma grande homenagem a ele”.

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