Biografia

Secos & Molhados ganha biografia minuciosa

Jornalista Miguel de Almeida disseca o fenômeno S&M

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 28/07/2019 às 9:28
Foto: Ary Brandi/Divulgação
Jornalista Miguel de Almeida disseca o fenômeno S&M - FOTO: Foto: Ary Brandi/Divulgação
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“Ao ganhar as calcadas da Rua Amaral Gurgel, em direção a uma cantina do Bexiga, bairro italiano de São Paulo, onde encontraria João Ricardo e Gerson Conrad, os outros dois integrantes do recém lançado Secos & Molhados, Ney Matogrosso imaginava que teria apenas mais um jantar com colegas, quase uma confraternização pelo surpreendente sucesso alcançado pelo grupo em poucas apresentações no Teatro Ruth Escobar.

 O empresário do grupo, o jornalista Moracy do Val, também estaria presente. Eles tinham muitos assuntos a tratar. A Continental deveria lançar o primeiro disco da banda. Aquilo soava como um milagre, porque antes haviam recebido muitas recusas. A pequena gravadora apostaria naquele trabalho que unia poemas de consagrados autores embalados em melodias roqueiras. A fórmula se tornaria um dos maiores fenômenos da música brasileira contemporânea”.

 O texto entre parênteses é o início da história do Secos & Molhados contada pelo escritor e jornalista paulista Miguel de Almeida, em Primavera nos Dentes : A História dos Secos & Molhados (editora Três Estrelas, 376 páginas R$ 54,87). O trio tinha tudo para não dar certo. Era o grupo errado na época errada. Em 1973, o Brasil vivia a época mais dura do regime militar, a censura nunca fora tão feroz. O povo seguia sua vida indiferente ao regime, contestado por um punhado de militantes que vinham sendo ferozmente combatidos e dizimados. Artistas tinham discos inteiros vetados pelos censores. Antes de ser mostrado ao público, os shows eram antecipados para a censura.

 Não se sabe como os Secos & Molhados passaram por estes obstáculos. É certo que João Ricardo, o português, que criou o grupo, optou por letras amenas, parte delas poemas de escritores consagrados, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo e Manuel Bandeira. Ou seu próprio pai, o poeta português João Apolinário, que trouxe a família para o Brasil para escapar à ditadura salazarista. Letras palimpsestos, a denúncia estava sob várias camadas.

 No entanto, havia preocupação com o vocalista Ney De Souza Pereira. Ele tinha suas convicções e entre estas estava a de não ser mais um cantor, ou crooner de conjunto (a expressão banda só passou a ser usada no Brasil nos anos 80). “O espírito indócil e sedicioso de Ney Matogrosso, uma semana antes da estreia, passou a operar em alta voltagem. Não queria subir ao palco para repetir o que os outros artistas faziam. Naquele instante, as origens distintas e as intenções difusas de vida de cada integrante passavam lentamente a ser realçadas – e foram essas diferenças, logo esgarçadas, que levaram ao término da banda. Desde o início, os três foram testados pelo sucesso estrondoso e pelo dinheiro gerado no projeto. Não apenas por colocar em marcha algo inédito na cultura brasileira – um diálogo direto com a juventude, em escala jamais atingida, com influências no comportamento –, mas por movimentar uma vendagem de discos – essa, sim, inédita – que provocou um abalo (primeiro) nos egos dos artistas e (segundo, o que foi fundamental) em toda a indústria fonográfica da época. A mobilização de forças tão poderosas – fortunas, ciúmes, inveja e preconceito, nessa ordem – poria sempre à prova a personalidade dos três músicos. Outros personagens logo surgiram na trama, e não eram santos”.

 A maquiagem pesada fora copiada de Alice Cooper, diz-se até hoje. Foi na verdade foi influencia de um grupo americano de vanguarda nascido em San Francisco em 1969, os Cockettes, fundado por Hibiscus (George Edgerly Harris III). Além de Ney Matogrosso, eles influenciaram também o Dzi Croquettes. Eis como Miguel de Almeida descreve a estreia dos Secos & Molhados, centrando-se na performance inusitada do vocalista:

 “Usava uma tanga e, ao redor da cabeça, um lenço; o peito, desnudo.Ainda não era a pintura fechada que depois viria a caracterizar o grupo. Mesmo assim, provocava espanto um conjunto de música subir ao palco purpurinado e com seu vistoso e longilíneo intérprete praticamente sem roupa”. O público ficou encantado com o grupo, o show estendeu-se a uma temporada de uma semana, mas João Ricardo e Gerson Conrad continuavam apreensivos com o que iam pensar deles. Ney não lembra de quem partiu a sugestão para que ele fosse mais comedido no palco:

 “Queriam que ele deixasse de dançar no palco com trejeitos. Aquilo gerava boatos, piadinhas e insinuações que não eram bons para o grupo, em especial para João Ricardo e Gérson Conrad. Além da dança, também a pintura deveria ser abandonada, ao menos atenuada. — Estão dizendo que somos um grupo de bichas… – alguém reclamou na mesa, dando a Ney a justificativa do pedido, ou seria uma ordem? O silêncio foi curto e embaraçoso. João, Gérson e Moracy (o empresário) perceberam o cerrar de lábios de Ney e o olhar fechado e cru lançado a partir de sua inclinação de cabeça. Não eram bons sinais. — Ora, digam que vocês não são veados – Ney disparou.

 Novo silêncio. Agora mais curto. João ou Moracy insistiram que aquela fama de bichas não seria boa para a banda, quem sabe se Ney se resguardasse um pouco… — Ou continuo do meu jeito ou saio do grupo. Agora”. Deu o ultimato, da mesma forma como enfrentou um coronel homófobo que comandava os policiais no célebre show dos Secos & Molhados no Maracanãzinho. 20 mil pessoas no estádio, as primeiras filas espremidas pelos homens do coronel, que impedia que se aproximasse do palco. Ney Matogrosso parou de cantar. A banda parou de tocar. O coronel ordenou que ele voltasse a cantar. Ney o encarou. Talvez fosse preso depois do show, mas não se intimidou. O coronel desistiu e mandou que os soldados liberassem o frontstage.

Miguel de Almeida compõe a história dos Secos & Molhados delineando o cenário cultural e político daquele começo de década, e um pouco de décadas anteriores, para emendar a narrativa com o udigrudi e o desbunde dos 70. Na história entram nomes feito a atriz e produtora Ruth Escobar (em cujo teatro o Secos & Molhados estrearia), Luhli, compositora de O Vira e Fala, que logo seriam gravadas pelo Secos & Molhados (ela sugeriu Ney a João Ricardo), e o diretor de teatro Antunes Filho, que entrou na história feito Pôncio Pilatos no Credo, por acaso. João Ricardo colocou o nome do diretor no cartaz do primeiro show dos Secos & Molhados, no Casa de Badalação e Tédio, no Bexiga. Serviria para dar mais moral ao grupo.

 TRIO

 João, Gérson e Ney não podiam ser mais diferentes entre si. Ney era oito anos mais velho do que João, e tinha onze a mais do que Gerson. Filho de um militar, saíra de casa aos 17 anos. João trabalhava como jornalista (o pai era importante no meio, foi fundador da APCA - Associação dos Críticos de Arte de São Paulo), enquanto o pai de Gérson trabalhava no Páginas Amarelas, empresa de catálogo telefônico, usadas por décadas no País. Juntos no palco eram perfeitos. Curiosamente, gravadoras não deram atenção à fita cassete que João Ricardo lhes entregou. Quem abriu os caminhos foi o empresário Moracy do Val que exerceria importante papel no grupo. Quando o S&M chega à Continental o trio já era um septeto, com os músicos Willy Verdaguer, John Flavin, Marcelo Frias, Sérgio Gripa Rosadas, e Tato Fischer, que sairia para entrada de Emílio Carrera. Como ressalta Miguel de Almeida, um caldeirão de nacionalidades.

 O português João Ricardo, Verdaguer e Frias eram argentinos, Flavin, filho de uma irlandesa, e Carrera filho de imigrantes espanhóis. Gravado em 15 dias, em 90 horas, o álbum de estreia ficou pronto. Ressalte-se a participação de Zé Rodrix e Willy Verdaguer, fundamentais para o sucesso de O Vira, que passou de um rock a uma música portuguesa, e um dos grandes sucessos do disco.

 “Vou colocar a cabeça de vocês na mesa. Como o nome é Secos & Molhados, minha ideia é esparramar pela mesa algumas coisas de comida. Vamos assumir o conceito do nome, que é muito bom”, palavras de Antônio Carlos Rodrigues, autor da foto de capa. A sessão de fotos é narrada em minúcias no livro. A continental não acreditava muito no S&M. Fabricou apenas 1,500 cópias do LP. No Rio, Miéle & Bôscoli precisavam de uma música para tocar no Fantástico. Tomaram um porre e se esqueceram de escutar os discos que trouxeram pra escutar. A caminho da Globo, decidiram-se pelo o dos Secos & Molhados por causa da capa. Escolheram O Vira e Sangue Latino.

 “A partir daquele instante, sem saber, estariam no centro de um furacão em escala máxima. Foram lançados do anonimato à celebridade em pouco menos de seis minutos – tempo exato das duas canções atingirem o Brasil.” O resto da história, que não durou muito tempo, é muito bem contada em Primavera nos Dentes: A Biografia dos Secos & Molhados. O disco de estreia em breve ganha livro do jornalista Lauro Garcia Lisboa, pela Edições Sesc.

 

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