Ícone

Ney Matogrosso fala sobre 'Bloco na Rua', política e memória do Recife

Cantor apresenta show dia 31 de agosto no Teatro Guararapes

Márcio Bastos
Cadastrado por
Márcio Bastos
Publicado em 30/08/2019 às 18:19
Alexandre Gondim/JC Imagem
Cantor apresenta show dia 31 de agosto no Teatro Guararapes - FOTO: Alexandre Gondim/JC Imagem
Leitura:

Quando entrar no palco do Teatro Guararapes sábado (31) para apresentar o show Bloco na Rua, Ney Matogrosso, 78 anos, estará com o rosto coberto por um adorno criado pelo estilista Lino Villaventura. “Gosto de entrar sem estar com o rosto de fora, como se fosse um ser não sei de onde”, disse Ney em entrevista coletiva. Essa imagem, aliás, talvez emblemática para representar um artista que, coberto ou com o peito de fora, maquiado ou de cara limpa, continua a exercer um fascínio singular, como um objeto não identificado, um mistério impossível de ser completamente decifrado.

No Recife desde a última quinta-feira, Ney se reencontra com a cidade após três anos, quando se apresentou pela segunda vez com a turnê Atento aos Sinais. A capital pernambucana, inclusive, habita sua memória afetiva desde a infância, quando, por volta dos quatro anos, morou no bairro de Casa Amarela, por um período, devido à itinerância exigida pela carreira militar do pai.

“Tenho memória da rua em que morei, que se chamava Rua do Jenipapeiro. Era uma ladeira que tinha jenipapo plantado nela inteira. Nem sei se ela existe, mas lembro do cheiro. Lembro disso tudo por causa do cheiro. E teve a história do camarada que chegou na grade me chamando, era uma grade de ferro, e eu fui. E, de repente, vieram as empregadas gritando dizendo que era o papa-figo. Eu era uma criança, não sabia o que era isso”, lembrou, esboçando um sorriso.

De afeto, também, é marcado o repertório da nova turnê, que reúne canções de diferentes épocas compositores, como Chico Buarque (Rita), Raul Seixas (A Maçã), Adriana Calcanhotto (Mais Feliz), Rita Lee (Jardins da Babilônia), DJ Dolores (Álcool) e Sérgio Sampaio (Eu Quero Botar Meu Bloco Na Rua, que dá nome ao show). Também estão presentes faixas do repertório da carreira solo de Ney e de sua época no Secos & Molhados, como Sangue Latino e Mulher Barriguda. Há apenas uma inédita, Inominável, de Dan Nakagawa

“Cada um é um. Neste eu fiz um repertório já gravado por muita gente. Não tenho esse tipo de problema”, conta. “Eu vou dar minha leitura, minha visão. Então, o show é baseado nisso: músicas que já foram gravadas por outras pessoas, até mais de uma vez, e algumas músicas do meu repertório antigo, o que eu também não faço com muita frequência”, contou sobre a escolha do setlist.

SER O DISCURSO

Em relação à música de Sérgio Sampaio, considerada um dos grandes hinos contra a repressão da ditadura militar, Ney disse não tê-la selecionado por questões políticas. A questão dos discursos no palco, afirmou, não lhe interessa, pois considera que sua existência e obra artística já demarcam oposição ao conservadorismo.

“Eu sempre quis cantar essa música, só não achei um lugar para ela. Aí, agora, achei que podia ser a hora e dela tirei o nome do show, porque acho que estimula a ideia de algo em movimento, andando. Botei só Bloco na Rua porque acho que sintetiza mais e dá essa noção de movimento”, reflete. “Eu nunca soube que esta música era relacionada à ditadura. Sei que ela foi feita na década de 1970. Mas não estou fazendo discurso político não, tá? Eu não faço discurso. Eu sou muito mais sutil. Não me interessa fazer discurso. Não sou de discurso, mas isso não me impede de falar e cantar o que eu quero. Eu sou o discurso. Dizem: ‘pega a bandeira’. Eu sou a bandeira, não preciso pegar.”

Ainda sobre o repertório, Ney enxerga que se há uma leitura política da seleção das músicas, isso de dá pelo conteúdo delas, que atravessaria problemas e situações. Ou seja, são atemporais.

“Este repertório foi montado há dois anos, não tinha ninguém no horizonte. Eu vinha fazendo calmamente esse roteiro. Portanto, se acham que é uma coisa que pode ser vista como política, pode ser vista assim em qualquer tempo. Quando eu fiz não tinha horizonte indicando nada do que está acontecendo agora. Então, estava fazendo um repertório independente, livremente, pelo prazer de dizer aquelas coisas. O repertório é condizente com tudo que a gente está vivendo”, reforçou.

Não articular intencional e explicitamente um discurso político no show não significa que Ney se exima de avaliar o momento pelo qual o país atravessa. Sobre a situação da arte, ele é enfático em mostrar sua preocupação.

“Agora está ficando pior. Parece que agora estão atacando gravemente o cinema. Acho uma tristeza. Não só corte de edital, como filmes sendo proibidos. Então, se trata de uma censura. Não posso me referir a isso de outra maneira que não seja censura”, observou.

DETALHISTA

Não é só o repertório que passa pelo crivo atento de Ney Matogrosso. O artista se envolve em todas as partes do processo criativo, ainda que, desta vez, tenha se abstido de opinar no figurino e, por falta de tempo, não tenha participado de todo o desenho da luz, uma das áreas que tem mais afeição.

“Foi a primeira vez que eu não opinei. Gosto de estar junto, de falar, mas o Lino não queria. Eu disse ‘tudo bem, mas se eu não gostar, não vou usar, porque não sou obrigado a usar uma coisa que eu não me sinta bem’. Mas, gostei”, confidenciou sobre o figurino, que nesta turnê é apenas um, em contraste com as quatro trocas de roupa da turnê anterior.

Sobre a iluminação, que é assinada Juarez Farinon, Ney enfatiza ainda que supervisionou tudo, uma vez que a luz no seu show é trabalhada em detalhes, quase como “uma coisa bordada, uma tapeçaria”. O cenário composto por projeções, é de Luiz Stein.
A banda que o acompanha é a mesma da turnê anterior, Atento aos Sinais, e é composta por Sacha Amback (direção musical e teclado), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Mauricio Negão (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).

Assim como tem feito nas últimas turnês, Ney Matogrosso estreou o show e, só depois, gravou o CD e DVD ao vivo. O registro de Bloco na Rua já foi feito no Rio de Janeiro, em uma sessão restrita a convidados. A opção por esse formato foi, segundo o artista, para possibilitar que os cinegrafistas ocupassem o palco, podendo registrá-lo por ângulos diversos, inclusive bem próximos de seu rosto. A obra está em fase de mixagem e ainda não há previsão de lançamento.

“Quando gravava disco por obrigação, por contrato, achava sempre isso, que eu gravava e não tinha nem entendido direito a música. Depois, eu achava que ficava melhor”, explicou sobre o novo método de trabalho.

Últimas notícias