Nova fase

Crítica: Em 'Norman Fucking Rockwell', Lana Del Rey atualiza narrativa

Cantora e compositora entrega trabalho afetivo, político e reflexivo

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 24/09/2019 às 18:22
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Cantora e compositora entrega trabalho afetivo, político e reflexivo - FOTO: Reprodução
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A noção do “sonho americano” – pautada na liberdade, prosperidade e respeito às diferenças – foi disseminada no imaginário dos estadunidenses e de outras nações através de poderoso sistema político e cultural. Muitas das imagens que consolidaram esse ethos foram produzidas pelo pintor e ilustrador Norman Rockwell (1894 – 1978), que retratou em suas obras um recorte idealizado do cotidiano dos EUA, especialmente da vida burguesa, de incontestável felicidade. Coerente, portanto, que em um momento de desconstrução desses mitos, cristalizada na imagem de Donald Trump, Lana Del Rey tenha intitulado seu sexto disco de Norman Fucking Rockwell, algo como “maldito Norman Rockwell”, em português.

Crítica ferrenha de Donald Trump, Lana Del Rey teve seu trabalho diretamente afetado pela eleição do republicano. Se o início da carreira, com Born To Die (2012), era pontuado por uma celebração da estética do “american way of life” (o estilo de vida americano) das décadas de 1950 e 1960, tão retratadas por Rockwell, seu discurso ganhou novos contornos desde o pleito de 2016, quando Hillary Clinton foi derrotada. Era como se não fizesse mais sentido exaltar uma América que, agora, se revelava mais do que nunca machista, racista, xenofóbica e homofóbica. Símbolos como a bandeira americana, até então muito usados pela cantora, começaram a ganhar novos significados.

O disco Lust For Life (2017) lançava alguma luz na atmosfera lúgubre dos dois primeiros álbuns e veio como uma resposta contra o pessimismo que atingiu a esquerda e parte dos jovens e das minorias identitárias pós-eleições. Se um dia Lana já chegou a afirmar que “já queria estar morta”, naquele disco, em faixas como Love, ela cantava sobre como apesar do peso do mundo ser “suficiente para fazer você enlouquecer”, o mundo é dos jovens e estes não poderiam recusá-lo. Deveriam, pelo contrário, abraçar a força dessa juventude e transformar, através do amor, a confusão do entorno.

Norman Fucking Rockwell soa como uma espécie de ressaca após a decepção e tentativa de não sucumbir à tristeza. O disco tem uma atmosfera melancólica, característica de Lana Del Rey, e suas composições consolidam questões que vinham sendo trabalhadas pela artista há alguns anos. Suas relações amorosas, por exemplo. No começo da carreira, Lana era uma espécie de femme fatale atraída pela escuridão e por homens abusivos, de certa forma glamourizando-os. Este comportamento autodestrutivo dá lugar agora a uma visão crua desses homens, predadores que, na verdade, estão tão despedaçados que precisam de presas para destruir.

Na faixa-título, que abre o disco, Lana dispara: “Você é engraçado e é selvagem/Mas não sabe a metade da merda/Pela qual você me fez passar/Sua poesia é ruim e você culpa as notícias/Mas eu não posso mudar isso/E não posso mudar o seu humor, ah (...)/Porque você é apenas um homem”.
Esta mudança de paradigma é aprofundada na canção seguinte, a emblemática Mariners Apartament Complex. Nela, a cantora subverte os papéis de gênero socialmente estabelecidos. Sua escrita, mais afiada do que nunca, enfatiza a força do feminino, reclamando seu poder e a agência de suas ações.

“Você tirou minha tristeza de contexto/No Complexo de Apartamentos Mariners/Eu não sou uma vela ao vento/Eu sou a prancha, o raio, o trovão/O tipo de garota que vai te fazer pensar/Quem você é e quem você foi/E quem eu fui está com você nessas praias(...)/Eu sou seu homem/Eles confundiram minha bondade com fraqueza/Eu estraguei tudo, eu sei disso, mas Jesus/Uma garota não pode fazer o melhor que consegue?/Pegue uma onda e absorva a doçura/Pense nisso, a escuridão, a profundidade/Todas as coisas que me fazem ser quem eu sou/E quem eu sou é uma pessoa que muito crê”, canta.

POETA DA AMÉRICA

É interessante pensar essa mudança na imagem do homem nas composições de Lana Del Rey como um reflexo do panorama político, que evidenciou as entranhas dos EUA, seus aspectos mais violentos e intolerantes, representados no homem branco, hétero e cis. Nesse sentido, por mais que as canções da artista tenham um caráter intimista, suas mensagens não deixam de ser políticas.

Melancolia e uma forte autoconsciência imprimem nas músicas de Norman Fucking Rockwell um certo zeitgeist de um país que se prepara para, ano que vem, voltar às cabines de votação. Em 2020, os EUA podem decidir que tipo de imagem querem de si: a idealizada (mas falsa) ou uma outra possibilidade, aberta às diferenças, que concretize a promessa de liberdade do sonho americano.

MERGULHO

Consciente ou inconscientemente, Lana Del Rey é uma das vozes dessa geração jovem, cheia de sonhos e frustrações, de paixão pelo vintage, mas que anseia por um futuro melhor. As produções do novo álbum, todas assinadas pela artista e por Jack Antonoff (que trabalhou em discos de Lorde, Taylor Swift e St. Vincent), são marcadas pela riqueza de detalhes, com toques de psicodelia (como na excelente Venice Bitch, faixa experimental com mais de nove minutos de duração) e folk, pop e trip-hop (Doin’ Time, cover da banda Sublime, está entre os grandes momentos do disco). Elas evocam o passado e o porvir, firmando-se, invariavelmente, no presente. As referências, que vão de Kanye West a David Bowie, passando pela poeta Sylvia Plath e o fotógrafo Slim Aarons, permeiam a obra sempre de maneira incisiva.

A voz aveludada de Lana, que canta quase como se declamasse, sem arroubos de emoções, cria uma atmosfera particular, que parece evocar tardes de verão, assim como noites solitárias. Como a própria artista classificou, é um disco que evoca “um estado de espírito”, mas, qual seria essa sensação, cabe a cada ouvinte. Algumas imagens são recorrentes, como o verão e a Califórnia, estado que dá nome a uma das canções, e que também é citado em tantas outras, como How To Disappear. Epicentro do movimento hippie nos anos 1960, é também onde a nova-iorquina vive e compõe, uma espécie de refúgio liberal em meio ao conservadorismo do centro-oeste americano.

Em um momento de desesperança no presente e pouca perspectiva para o futuro, a coragem de viver o agora, tentando encontrar alguma felicidade nele, talvez seja uma das armas mais revolucionárias. Em Happiness Is a Butterfly, Lana canta: “A felicidade é uma borboleta/Nós deveríamos capturá-la enquanto dançamos/Eu me perco na música, amor/Todos os dias são como uma canção de ninar/Tento pegá-las como se fossem um relâmpago/E canto isso em minhas músicas, eu sou louca”.

Ainda acreditar na beleza, na poesia e na arte, apesar do caos, talvez seja de fato uma loucura. Mas, antes de tudo, é uma loucura necessária. Não por acaso, ela encerra o álbum com uma canção intitulada Hope is a Dangerous Thing For a Woman Like Me To Have – But I Have It (em português: “Esperança é uma coisa perigosa para uma mulher como eu ter, mas eu tenho”), na qual entoa: “Eles escrevem que eu estou feliz/Eles sabem que eu não sou/Mas, pelo menos, você pode ver que eu não sou estou triste”. Lana entende que, entre a felicidade e a tristeza há muitas camadas e que, entre elas, nos cabe navegar com altivez e sinceridade, longe de camuflar nossos sentimentos como se estivéssemos em um quadro de Norman Rockwell.

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