Disco

Cinval Coco Grude criou o groove pigdigigarelepo

Músico corre por fora da raia há vinte anos

JOSÉ TELES
Cadastrado por
JOSÉ TELES
Publicado em 01/01/2020 às 10:00
Foto: Divulgação
Músico corre por fora da raia há vinte anos - FOTO: Foto: Divulgação
Leitura:

Geralmente trazendo a mão uma sacola de plástico com frutas (umbu, cajá, laranja), Cinval se senta numa mesa no Barbosa, na Rua Mamede Simões, pede uma branquinha. A fruta é o tira-gosto, o “ponche” no linguajar popular. Na bolsa a tiracolo, estão os discos. Ele é músico, estima que já lançou 40 CDs. A maioria da produção é caseira, artesanal. Gravada, sabe-se lá como, num gravadorzinho furreca, os samples manipulados em fitas cassetes. Na maioria das vezes só ele identifica de onde vieram todos aqueles sons e vinhetas que decoram sua música.

Cinval Cadena, ou Cinval Coco Grude nos créditos do disco, é a banda de um integrante só, com eventuais participações. Uma das participações mais constantes é do flautista Ciano Alves, do Quinteto Violado. Cinval tornou-se músico por acaso, em plena efervescência do manguebeat. Abriu com os irmãos o Guitarra’s, minúsculo bar na entrada da Galeria Joana D’arc, no auge do Polo Pina. A intenção não era o lucro. Pelas dimensões, o bar só comportava os parentes, todos bons de copo.

Os frequentadores da galeria se chegaram ao Guitarra’s pela qualidade da música. Cinval é dono de uma respeitável e selecionada coleção de discos, a maior parte de LPs. No bar se escutava de Muddy Waters ao experimentalismo do guitarrista Fred Frith, ou a sua banda, a Henry Cow, Frank Zappa, e soul. Quem passou a freguês do Guitarra’s foi Ortinho, agora Wharton, na época trabalhando no Bom Preço.

Ele e Cinval encetaram um amizade musical que acabou na banda mais roqueira do manguebeat, a Querosene Jacaré, que lançou um disco matador, em 1998, Você Não Sabe da Missa Um Terço, com a seguinte formação: Ortinho (voz), Hélio Loyo (guitarra), Tonca (guitarra), Alfaia (baixo), Cinval (percussão) e AD Luna (bateria). A Querosene Jacaré chegou a tocar em Portugal e EUA, mas teve duração curta.

Cinval começou carreira solo, lançando o primeiro disco artesanal há vinte anos. Naquele tempo ainda existiam bastante lojas de discos na cidade para escoar sua produção, sempre em edição limitada. Já há algum tempo ele mesmo vende seus CDs (ainda não lançou nada nas plataformas de música para streaming).

Sem se enturmar, nem atrair as atenções da geração mais jovem, que praticamente o desconhece, Cinval se tornou uma espécie de Miró da Muribeca da música pernambucana, sem ser alvo de culto como acontece com o poeta. Em comum, ambos tiveram produzidos curtas-metragens sobre seus trabalhos.

NO FUNDO DO MAR

 Em 2005, Cinval já chegava ao 15º disco, O Craque da Bola. Sua criatividade estende-se aos títulos dos CDs, beirando as vezes à limeirice (de Zé Limeira), a exemplo do Vigiando a Tanajura, de 2000, Música Escalafobética (2002), e ainda Pigdigigarelepo Miscigenação (2007). O mais recente chama-se Fumando no Fundo do Mar, que dedicou a Jimi Hendrix.

 Um repertório quase inteiramente instrumental, totalmente sem estilo, sem parâmetro pelo qual possa ser medido. Cinval emprega por intuição o método que Tom Zé tem usado por reflexão, remodelar as próprias composições. Em Fumando no Fundo do Mar, ele reuniu temas de outros discos. Tornando-as num disco novo. Ele é o alquimista de sons, que vai da percussão ao sintetizador, teclados, guitarra, voz e efeitos especiais, além de ser autor de todas as faixas.

 Mas conta também com colaborações: Daniel Malcriado (guitarra), Jessé de Paula, violinista que tocava na rua, e que foi vitima de um trágico acidente no metrô do Recife.

No encarte de Fumando no Fundo do Mar (que ele trata por poema visual), Cinval lista “apenas” 27 álbuns, o primeiro deles, Falando das Ruas completando duas décadas. Efeméride sem comemorações, com as quais ele nem se incomoda. Não tem produtor, raramente participa de eventos oficiais, faz disco porque curte música. Já escutou tudo.

 Mora num apartamento pequeno na Conde da Boa Vista, em meio a centenas de LPs. Não usa computador, celular e mídias sociais, obviamente. Interessados no Fumando no Fundo do Mar e discos anteriores anotem o número da única coisa convencional do outsider da música pernambucana: o telefone, 3231-7782.

 

Últimas notícias