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Luisa Marilac e o sonho de ser aceita

Travesti, que se tornou conhecida de depois de postar vídeo no YouTube, apresenta-se neste sábado (28) no Recife

Fabiana Moraes
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Fabiana Moraes
Publicado em 28/05/2011 às 7:30
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Travesti, que se tornou conhecida de depois de postar vídeo no YouTube, apresenta-se neste sábado (28) no Recife - FOTO: Divulgação
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Dez perguntas foram preparadas para a entrevista com Luisa Marilac. Quatro foram feitas. Das seis restantes, uma foi respondida espontaneamente. As outras cinco ficaram no papel. Dos assuntos abordados - violência, shows, sucesso, preconceito, Supremo Tribunal Federal (STF), aceitação, mídia, álcool, família, etc -, um foi tratado de maneira impublicável. Tratava-se sobre como viver no mundo cão (duas citações a partes íntimas e três palavrões impossibilitaram a divulgação do depoimento). Outros temas surgiram por conta de Luisa: um futuro estúdio em Guarulhos, um homem casado que mora na Espanha, Deus, acarajés e a oferta de rapazes disponíveis na capital pernambucana. Nada disso foi dito de maneira organizada: misturou-se mídia com Deus, acarajé com família, Espanha e STF, mundo cão com aceitação. Primeira lição: Luisa não se roteiriza.


Exemplo: tentou-se saber quanto Marilac, travesti em alguns sites, transexual em outros, estava ganhando pela série de shows que está realizando no País. "Olha, tentaram me fazer essa mesma pergunta lá na produção do Superpop. Falei que se falassem sobre isso de novo eu deixaria o programa. Eles entenderam, falaram que realmente era falta de educação". Segunda lição: Luisa é muito sincera.

Recorremos à técnica do abafa o caso e deixamos a mais recente celebridade nascida no YouTube falar. Não foi nenhum problema. "Vou investir tudo o que estou ganhando em um estúdio, não vou depender da mídia não. Tô aqui falando pra você com o coração aberto. Eu vou fazer meus próprios vídeos, uma coisa diferente, para mim seria demais ficar sendo controlada. Quero fazer independente mesmo, essas televisões não são liberais coisa nenhuma. Não vou ter oportunidade na TV aqui porque acham que travesti é só palhaçada."

Em todos os programas televisivos pelos quais já passou, Luisa, nome de santa (a francesa Louise de Marillac Le Gras, que morreu em 1660) recebeu a recomendação de amenizar as palavras, coisa que ela detestou. É por isso que criou um canal do YouTube, o "pai" de todo seu sucesso. O famoso vídeo no qual ela, na piscina de uma casa na Espanha, diz os onipresentes "bons drink" e "teve boatos que eu estava na pior" já foi acessado quase três milhões de vezes.

O resultado é que a travesti que há anos morava na Europa ficou, além de célebre, meio viciada em internet. "Tô aqui subindo um vídeo contando tudo o que está acontecendo comigo, já já você vai lá na internet ver". Naquele dia, havia ido para a cama às 6h. Passou a noite toda respondendo as mensagens de seus fãs no Twitter.

A crítica correta ao tratamento que travestis recebem no País - com um pulmão a menos após levar sete facadas em um bar de São Paulo, Luisa é a própria voz da experiência - nos leva a fazer uma das perguntas que estavam preparadas. É preciso ser rápida, antes que a moça saque outro assunto. "E o que você achou da decisão do Supremo em liberar a união homoafetiva?" "Uma palhaçada. Achei ridículo. Tinha que ver primeiro essa violência contra homossexuais, você viu aquele vídeo do gay sendo assassinado em Campina Grande? Eu passei por aquilo, eu sei o que é. Tá na hora de parar de matar veado. Essa coisa de casamento a gente vê depois". Terceira lição: Luisa não nem a menor intenção em agradar a todo mundo.

Uma coisa é certa: sabe que todo o deslumbre atual tem prazo de validade. Sabe que daqui a pouco surge a Próxima Pessoa Mais Quente da Internet. Está preparada para voltar a não-fama. "A imprensa só serve para mostrar corpo no chão. Mostram a pessoa morta e pronto, não vão falar com a família, não querem saber da vida daquela pessoa que morreu. Só mostram coisa ruim de travesti. Eu sei que estou mudando isso, porque carrego essa coisa de diva. Eu sei que vão começar a ver travesti de uma maneira diferente."

Ao lado dela, ao telefone, está sua mãe, Maria do Carmo, cabeleireira em Guarulhos que largou o secador para acompanhar a filha nos shows. A dupla passou recentemente por Belo Horizonte, Rio e Ceará. "Vou estar aí no Recife com a Luisa, hein?", diz Maria do Carmo, também impressionada com o sucesso de sua menina. Viu quando, em Fortaleza, uma garota saiu correndo na rua, chorando, para abraçar o corpo de quase 1,90 metros de sua filha. Luisa, o coração aberto (evidenciou tal condição três vezes), não controla a emoção. "Eu nunca recebi tanto carinho em minha vida. Você não tem noção de como isso tá sendo importante para mim, como é bom ser aceita. É claro que eu sentia falta. Eu tomei porrada a vida toda." Última lição: Luisa é como todos nós. Tem esse estranho e humano vício em afeto.

* Em memória a Patrícia Gomes, da Articulação para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans).

NOTA DO JC
Na quarta-feira 9 de junho, a travesti Luísa Marilac postou no You Tube um vídeo no qual chama, entre outros adjetivos, a jornalista Fabiana Moraes, deste Jornal do Commercio, de “falsa” e “homofóbica”. A reação de Luísa foi gerada pelo texto publicado no dia 28/5/2011, cujo título é "Luísa Marilac e o sonho de ser aceita". Para ela, tratou-se de um ato de preconceito. Infelizmente, Luísa, assim como as várias pessoas que replicaram ou comentaram a matéria nas redes sociais, parecem não ter lido o texto, que a aborda com extremo respeito e cuidado.

O título faz menção ao fato de a travesti, como ela mesma informa, estar sendo tratada com um carinho nunca antes recebido em sua vida. Faz menção a um episódio comentado por Luísa, sobre uma menina que a abraça e chora. É desse tipo de aceitação que a matéria trata e que fica cifrado no final do texto: "'Eu nunca recebi tanto carinho em minha vida. Você não tem noção de como isso tá sendo importante para mim, como é bom ser aceita. É claro que eu sentia falta. Eu tomei porrada a vida toda.' Última lição: Luísa é como todos nós. Tem esse estranho e humano vício em afeto." A matéria foi dedicada a Patrícia Gomes, vice-presidente da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans), que havia falecido recentemente.

A jornalista Fabiana Moraes tem entre seus trabalhos mais recentes o especial FALE COM ELAS com elas, na qual aborda a vida das travestis recifenses. A série recebeu reconhecimento da Frente Parlamentar LGBT. “A jornalista Fabiana Moraes foi feliz e corajosa ao dar voz às travestis de Pernambuco e retratar na série de reportagens todo o estigma que estas pessoas carregam ao longo da vida, sendo muitas vezes alvo de violência e humilhações”, disse Isaltino Nascimento, criador da Frente. Importante dizer que, em três dias da série, os nomes masculinos das travestis não foram publicados, um respeito em relação  à identidade feminina assumida por elas. Essa informação é importante para esclarecer que, ao contrário do que Luísa afirma no vídeo, seu nome de nascimento jamais foi questionado pela jornalista.

O valor do seu show foi de fato foi perguntado (questão, aliás, pertinente  e em de forma alguma desrespeitosa), e a informação consta na própria matéria. Fabiana, que tem dois prêmios Esso no currículo, também é autora da série O NASCIMENTO DE JOICY, na qual trata, com extrema delicadeza, da mudança de sexo de uma transexual do agreste pernambucano. A matéria gerou enorme repercussão, inclusive entre a comunidade LGBT. Na última semana, a Associação da Parada Gay de São Paulo comunicou que vai conceder à jornalista o Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade.

 

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