Samba

Gil, o aprendiz, passa a limpo as lições de João, o mestre

Apenas uma canção inédita num CD interpretado com sutileza

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 29/03/2014 às 6:00
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Ao longo de sua cinquentenária carreira, Gilberto Gil não cansa de louvar duas figuras exponenciais em sua carreira, Luiz Gonzaga e João Gilberto. A obra do primeiro ele revisita com frequência, enquanto a do segundo é aproximada com maior reverência. Em sua longa discografia há apenas um álbum gravado com João, e compartilhado também com Caetano (Brasil, 1981). Gilbertos samba (Sony Music) reverencia tanto João Gilberto quanto o samba. Tem repertório formado, em sua maioria, por sambas nos quais João deixou sua marca, não exatamente os clássicos mais conhecidos do repertório dele. De standard da bossa somente Desafinado (Tom Jobim/Newton Mendonça), e Você e eu (Carlos Lyra/Vinicius de Moraes).

Violonista de perícia e talento reconhecido, Gilberto Gil aprendeu com João a sempre ser desafinado, em relação ao óbvio. Aparentemente ele fez um disco de voz e violão, com eventuais intervenções de Bem Gil, Moreno Veloso, Rodrigo Amarante, Danilo Caymmi, Nicolas Krassik, e Mestrinho. Despojado, mas non troppo: “Bem e Gil criaram o ambiente de amor e respeito pelo som que condiz com as hors gastas por Gil, em casa, para trabalhar minuciosamente cada canção, as quais parecem estar sendo tocadas sem esforço consciente. Todas as gravações foram feitas com Gil cantando e tocando ao mesmo tempo. Em muitas delas ouve-se a percussão eletrônica de Domenico Lancelotti. Numa a guitarra (o Desafinado) a guitarra de Pedro Só”. As aspas para o trecho do release, meio ensaio, escrito por Caetano Veloso, para quem o disco reveste-se de importância pessoal e intrasnferível.

Foi a música de João que o aproximou de Gil, e levou os dois a mares nunca dantes navegados na MPB, reativando de tempos em tempos a revolução deflagrada por João Gilberto. No texto, Caetano lembra que conheceu Gil primeiro pela TV. Quando este aparecia na telinha, dona Canô chamava o filho: “Venha ver aquele preto que você gosta”. Gilberto Gil era então conhecido como Beto: “Para mim, Gil era o milagre de alguém de carne e osso que podia reproduzir os acordes que João Gilberto fazia no violão. Eu próprio mal decifrava as função tônica e dominantes. João Gilberto era uma iluminação para nós ,tanto técnica quanto esteticamente (Caetano).Gilbertos samba surpreende como surpreendeu João. Em Tim tim por tim tim (Haroldo Barbosa/Geraldo Jacques), de Amoroso , 1977), os instrumentos acrescidos ao violão de Gil soam com tal sutileza que mais são percebidos, do que escutados, sobretudo o violino do francês Nicolas Krassik, e o acordeom de Mestrinho. O autoreferente Desde que o samba é samba (Caetano Veloso, de João, voz e violão, 2000)recebe interpretação cadenciada, com Bem Gil, no glockenspiel, e Moreno e Domenico, na percussão. 

O início da carreira fonográfica de Gilberto Gil pode ser determinado a partir do compacto simples, lançado pela RCA Victor, que dividiu com Gal Costa em 1965. Ela interpreta Sim,foi você, de Caetano Veloso, enquanto Gilberto Gil canta a sua Vim da Bahia, samba na linha de Dorival Caymmi. Oito anos mais tarde, João Gilberto faria uma surpresa a Gil, gravando a música no álbum João Gilberto. A canção agora ganha outra conotação. Ambos vieram da Bahia, a síntese do disco, ressalta Caetano Veloso, que João quando a gravou, aparou arestas das sequência de acordes em sétimas: “... dando uma fluidez e redondeza inimagináveis à canção, sem deixar de expor-lhe a exuberância estrutural. Agora Gil a retoma simplesmente porque João a gravou - mas reduz grande parte da composiçao a um modalismo primitivista que nega sua natureza para reafirma-la em outro nível”. 

Não por acaso, Vim da Bahia é seguida por Gilbertos, a canção inédita do álbum que, assim como Desde que o samba é samba, é um imersão nas profundezas do samba e na procura da natureza do sambista. Começa com uma levada de chula, samba de roda, lundu. A ênfase é dada a percussão, com uma insinuação de batucada que não acontece. O violão é de outro mestre baiano, Dori Caymmi. Na letra mestre, aprendiz, outros mestres são citados, com a a referência, e também reverência ao pai de mestre e aprendiz, Dorival Caymmi, nos versos admiráveis: “Aparece a cada cem anos um/ a cada vinte e cinco um aprendiz/... foi Dorival Caymmi que nos deu/ a lição da canção como liceu”.

(leia mais na edição impressas de hoje Jornal do Commercio)

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