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Nick Cave e o Collective Sound cantam seus mortos

A alemã Nico e o filho de Cave são inspiração para os discos

JC Online
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Publicado em 05/10/2016 às 9:32
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A alemã Nico e o filho de Cave são inspiração para os discos - FOTO: foto: divulgação
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Eros, bem mais do que Tânatos, inspira poetas, seresteiros, enamorado. É a grande força que move os bardos da canção popular. Da maioria dos álbuns lançados este ano, por exemplo, poucos foram realizados sob a égide de Tânatos. Porém, se perdem em quantidade, são impecáveis na qualidade, como é o caso de dois títulos recentes que refletem duas tragédias. A morte da chanteuse alemã, Christa Pfäger, ou Nico, em 1988, e do estudante Arthur Cave, em 2015. Nico tornou-­se célebre por dividir com o Velvet Underground, o álbum de estreia de ambos, Velvet Underground and Nico, um dos discos mais influentes do rock. Arthur, 15 anos, era filho do australiano Nick Cave, cantor, compositor, escritor e ator.

No dia 18 de julho de 1988, de férias na ilha mediterrânea de Ibiza, Nico avisou ao filho Ari (cujo pai é Alain Delon) que ia de bicicleta à cidade comprar maconha. No meio do trajeto, sofreu um ataque cardíaco. Na queda, bateu com a cabeça e teve uma hemorragia cerebral. Permaneceu estendida no asfalto até ser socorrida por um taxista, que a levou a um hospital, onde morreu. Foi atriz, modelo, poeta, compositora e cantora. Atuou em filmes como La Dolce Vita, de Frederico Fellini, e Chelseas Girls, de Andy Warhol, antes de conhecer Andy Warhol. A carreira solo de Nico foi iniciada com Chelseas Girls (1967, um disco que detestava), relativamente bem­sucedido. Marble Index (1969) é seu trabalho mais influente.

Pouco lembrada 18 anos depois de sua morte, Nico ganhou um tributo da banda de vanguarda nova­iorquina (mas também com base em Berlim) Soundwalk Collective, no álbum Killer Roads, que tem participação de Patti Smith e de sua filha Jesse Paris Smith. O título, Estrada Assassina, é uma alusão ao acidente, enquanto o disco é elegia e reflexão sobre a morte. Como se fosse a trilha de um documentário, os temas se fixam nos momentos finais de Nico, expressados em música ambiente.

O Soundwalk Collective, formado por Stephan Crasneanscki, Simone Merli and Kamran Sadeghi, é um grupo que trabalha a música em suas múltiplas possibilidades, inclusive instalações sonoras. Na música da SC, "ambiente" não é apenas um rótulo musical. O trio realiza gravações in loco, no local-­tema das composições. Já fez isto inclusive na Amazônia. O ucraniano Crasneanscki captou sons de Ibiza, que conhece bem (era onde passava férias com a família) e transfere para a música os sons que, imagina, Nico deve ter escutado enquanto jazia na estrada.

Este projeto circula pela sua cabeça há alguns anos e começou a ser viabilizado quando ele e Patti Smith se encontraram num mesmo vôo, Paris/Nova Iorque. Ele falou a ela sobre o projeto, enquanto Patti Smith lhe revelou que havia comprado, numa loja de penhores em Paris, uma harmônica que pertenceu a Nico. Jesse Paris Smith, que trabalha com trilhas e estudou psico­acústica, juntou-se a eles. Em 2014, o Soundwalk Collective apresentou Killer Road ao vivo, em Nova Iorque, e em mais quatro cidades.

Das nove faixas de Killer Road, quatro foram registradas ao vivo. O álbum consiste de temas instrumentais introspectivos, quase sem melodias, que serve de fundo à voz de Patti Smith declamando, as vezes quase sussurrando, poemas inéditos ou cantando canções de Nico. My Heart Is Empty e Fearfully in Danger são de Câmera Obscura, álbum de Nico de 1968. A segunda tem versos premonitórios: "Numa estrada empoeirada, você repousa/temerosamente em perigo". The Sphinx é de The Drama of Exile (1985), enquanto My Only Child vem de Desert Shore (1970).

A única faixa que pode ser considerada uma regravação, embora muito mais uma recriação, é Fearfully in Danger (onde se escutam sons do instrumento que pertenceu a Nico). Nos demais temas o grupo e as duas Smith procuram emular paisagem com seus sons, enfatizando os estrilos dos grilos. Tudo fica, obviamente, no campo do subjetivo e do abstrato, mas é disco bonito, e uma bela homenagem a Nico, esfinge cujo trabalho até hoje não foi devidamente assimilado nem decifrado.

SKELETON TREE

Um filho que morre antes dos pais interrompe o curso natural das coisas como elas supostamente devem ser. Uma dor que alguns compositores da música popular já retrataram em canções ou álbuns inteiros. Nada que supere a tristeza de "arrumar o quarto do filho que já morreu", como canta Chico Buarque em Pedaço de Mim. Eric Clapton passou por isso, quando o filho de cinco anos despencou do 53º andar do prédio em que morava em Nova Iorque. De certa forma, Clapton sublimou a perda na balada Tears in Heaven, um dos maiores hits de sua carreira solo. Cada um se expressa, claro, conforme seu temperamento.

Nick Cave perdeu o filho de maneira igualmente absurda. Arthur Cave, de 15 anos, marinheiro numa primeira viagem de LSD, morreu ao cair de um penhasco, em Brighton, Inglaterra. Cave gravava seu 16º álbum, que teve a rota alterada, passando a ser a tentativa de encontrar um nexo para fatalidade. Sentimentos que se traduzem num documentário realizado das sessões de Skeleton Tree, lançado uma semana antes do disco. Skeleton Tree dificilmente renderá algum hit. É um dos álbuns mais densos na discografia do rock, no nível de Plastic Ono Band (1970), o disco em que John Lennon, influenciado pela terapia primal a que se submetia na época, exorcizava seus fantasmas existenciais, entre os quais a ausência da mãe, morta por atropelamento quando ele era adolescente.

Nick Cave, escritor de talento reconhecido, carrega nas tintas em letras recheadas de simbolismos, característica sua, embora desta vez seja mais direto, objetivo, com um primeiro single de causar calafrios: "Você caiu do céu/arrebentou­se em um campo/próximo do rio Adur/... com a minha voz, estou a te chamar", versos de Jesus Alone, premonitória canção, composta dois anos atrás.

O doc One More Time With Feeling, do também australiano Andrew Dominik, serve como release do disco. Não daria para realizar entrevistas coletivas logo em seguida ao trauma que se abateu sobre a família. Tudo o que poderia comentar com estranhos sobre a morte do filho estão nestas canções em que desnuda a alma. Elas falam por si mesmas sobre o drama pessoal do artista, que demonstra em sua obra anterior fascinação pela morte, pela face oculta da vida.

Não por acaso, um de seus álbuns é intitula­se Murder Ballads (Baladas de Assassinatos). Só que desta o que ele canta é tristemente real. Nick Cave nunca produziu discos fáceis, e nunca um tão difícil quanto este, para ele e para quem o escuta. Skeleton Tree não foi feito para o deleite de ninguém, nem é para tocar no rádio. A citada Jesus Alone, que abre o repertório de oito faixas, é envolta em um drone contínuo de sintetizador, enquanto Cave regurgita os versos. Repete várias vezes, como um mantra, em andamentos diferentes, "Com a minha voz/estou clamando por você".

Skeleton Tree é um álbum em que as melodias são monótonas, os arranjos lúgubres, a interpretação um lamento. Warren Ellis, da Bad Seeds, banda que toca há com Nick Cave, é parceiro em todas as faixas. O álbum é um lamento que dura 40 minutos, com canções de perplexidade e questionamentos. Skeleton Tree é um doloroso e belo ponto de interrogação

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