Ketchup

Jornalista francês revela o que se esconde por trás do ketchup

De passagem pelo Recife, Jean-Baptiste Malet apresentou seu documentário sobre o tema e concedeu entrevista sobre os bastidores da sua reportagem

João Rêgo
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João Rêgo
Publicado em 23/09/2019 às 13:39
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De passagem pelo Recife, Jean-Baptiste Malet apresentou seu documentário sobre o tema e concedeu entrevista sobre os bastidores da sua reportagem - FOTO: Divulgação
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O que há por trás do ketchup, presente nas mesas de quase todos restaurantes pelo mundo? A pergunta levou o francês Jean-Baptiste Malet investigar o fruto originário do produto: o tomate. Movimentações financeiras, globalização, geopolítica, e até a máfia, marcam presença na série de reportagens do jornalista investigativo, que veio recentemente ao Recife para debater e exibir seu documentário contando os bastidores dessa história.

Entrevista//Jean-Baptiste Malet

Jornal do Commercio – Quando surgiu o interesse em investigar o que está por trás do tomate?
Jean-Baptiste Malet – Em 2011, descobri a existência de uma conservaria no Vaucluse (França), “Le Cabanon”, comprada pelo exército chinês em 2004. Surpreendido pela presença física do exército num setor tão longe das preocupações militares, pedi para encontrar os dirigentes da empresa chinesa, os quais recusaram categoricamente me receber, nem sequer deixaram eu visitar o lugar. Não me deixei desanimar. Indo até o local, dei uma olhada através das grades. Enxerguei os barris, grandes tambores azuis de 230kg de molho concentrado, etiquetado “Made in China”. Essa descoberta me assombrou por muito tempo e fiquei com a vontade de rastrear todo o circuito produtivo. Por que existiam barris “Made in China” em plena Provença? Por que todo esse silêncio sobre a fabricação? Pensei na minha infância assistindo minha avó preparando suas conservas de tomates. Há algumas décadas, em Provença, era um ritual familiar transformar seus próprios tomates em seu próprio molho. Descobrir que havia barris de concentrado de tomates provenientes da China, no Vaucluse, não me pareceu fazer sentido, então fui investigar.

JC – Podemos entender a história do tomate também como a história da globalização e do avanço do liberalismo?
Malet – Um dos paradoxos do tomate, é que poderíamos realmente viver sem, não é um alimento incontornável, não é extremamente interessante do ponto de vista nutritivo para o corpo humano. No entanto, toda a humanidade o come e ninguém parece poder dispensar/renunciar. Em minha opinião, o seu papel é sobretudo simbólico. A sua história, sua circulação, as condições de produções, são representativas do melhor e do pior da globalização. Um tomate pode ser saboroso, delicioso até; um molho de tomate pode ser algo extraordinário. Porém, o mercado mundial, hoje, é também invadido por produtos horrorosos, não só no plano nutritivo e gustativo, como também de um ponto de vista ambiental e social. Na China, onde eu fui investigar para esse livro, vi crianças recolherem tomates de indústria. Às vezes, são prisioneiros de gulags chineses, que recolhem os tomates no Xinjiang. Esses tomates não são consumidos na China, mas vendidos para grandes multinacionais ocidentais que produzem, por exemplo, ketchup.

JC – Abordar a gastronomia com o jornalismo me parece algo raro, no geral.
Malet – O jornalismo deve encarnar um contrapoder e ser uma ferramenta de análise crítica do mundo. Muitas pessoas são surpreendidas ao descobrir um setor mundial tão globalizado, porque não imaginam que um tomate pudesse fazer uma volta ao mundo antes de chegar numa pizza ou numa garrafa de ketchup. No entanto, para mim é importante que todo mundo entendesse como funciona a economia mundial.

JC – Tratando agora do documentário que você vem apresentando pelo Brasil, queria saber como foi o processo de realizá-lo?
Malet – Há cerca de um século, a humanidade consumia muito poucos derivados do tomate, contudo, ele é hoje uma mercadoria universal. É uma história que eu quis contar. Vários episódios históricos contribuíram a fazer do tomate de indústria uma mercadoria universal. Por citar apenas alguns, podemos evocar a história da Heinz Company, primeira multinacional da história dos Estados Unidos, que precedeu Ford na produção em massa, nomeadamente utilizando o trabalho em cadeia a partir de 1904. Porém, a indústria do tomate nasceu realmente no Norte da Itália, no final do século XIX. A importante demanda de conservas de tomates da diáspora italiana na mesma época estimulou uma demanda mundial deste produto. Os milhões de imigrantes italianos no final do século XIX e do início do século XX foram os verdadeiros embaixadores do tomate de indústria. Nesta história tecnológica, se deve também mencionar a política da autarquia agrícola na Itália, sob o fascismo, que racionalizou significativamente as culturas, desenvolveu a pesquisa no agronegócio e faz da lata de tomates um símbolo ideológico da “autarquia verde”.

Este emblema, de inspiração futurista, permitia a conserva dos frutos da pátria. O paradoxo desta história é que o avanço tecnológico da indústria italiana, nascida sob “autarquia verde”, permitiu no pós-guerra, aos industriais italianos, globalizar a sua indústria: eles tinham as melhores ferramentas industriais. A invenção do barril asséptico de concentrado de tomates nos Estados Unidos, e o seu uso a partir dos anos 1980, favoreceu a expansão do setor mundial na nova configuração neoliberal: os fluxos de tomates de indústria podiam então ser intercontinentais. E a produção, ou seja, a cultura extensiva, podia ser descentralizada.

JC – E sobre o Brasil, como você enxerga toda essa discussão aqui?
Malet – O Brasil, como a maioria dos países do mundo, importa tomate de indústria. Na América do Sul, o Chile é um dois países mais importantes no que se trata da produção. Um terço do concentrado que se encontra no Brasil vem do Chile. Mas nos produtos de primeira qualidade que consomem os brasileiros, estão também tomates da China. O Brasil importou mais de 5 milhões de dólares de concentrado de tomates da China em 2017 e mais de 13 milhões do Chile. Em minha opinião, é uma loucura. A América do Sul é a bacia de origem do tomate, esse continente não deveria importar tomate chinês ou italiano. O tomate italiano representa 85% das latas de tomates pelados que se acha no Brasil. Porém, tudo isso decorre da velha ideologia liberal do século XVIII; segundo a qual fazer cruzar o Atlântico um tomate produzido por escravos ao outro lado do mundo é uma coisa boa. O que eu acho, pessoalmente, é que o Brasil poderia e deveria produzir a totalidade dos seus tomates. Mas, para isso, deve-se colocar em causa o dogma liberal e, consequentemente, o livre-comércio.

JC – Pensando num futuro próximo, até na atualidade. Como você contextualiza isso no atual governo Bolsonaro?
Malet – Não conheço o Brasil suficientemente para ser capaz de responder. No entanto, acho que o futuro da economia mundial depende dos cidadãos. Os cidadãos conseguirão amanhã construir uma economia mundial que responda às necessidades humanas? Ou vamos continuar por muito tempo a organizar a economia à volta do único imperativo da acumulação do capital?
Acho que a pergunta não é se estamos por ou contra o capitalismo, porque realizamos diariamente que a globalização não cumpre as promessas e que só uma minoria de atores econômicos tira partido da economia mundial.

A pergunta seria mais: que mundo podemos inventar para substituí-la? Acho que a reflexão sobre as fronteiras aduanarias, ou as normas sociais e ambientais, impõem-se. Ricos ou pobres, temos o direito de saber o que comemos. Todas as mercadorias deveriam ser produzidas na mais perfeita transparência. Devemos criticar os tratados de livre-comércio que impõem em todo o mundo das mercadorias de baixa qualidade que exploram trabalhadores e destroem o único planeta no qual vivemos. Não é só um debate político. É uma questão de dignidade.

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