PETRÓLEO

Desastre no Nordeste expõe dificuldade do governo em aplicar legislação ambiental

Assim como a exploração do petróleo no Brasil, a legislação para proteger o meio ambiente de possíveis tragédias evoluiu nos últimos anos

Lucas Moraes
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Lucas Moraes
Publicado em 27/10/2019 às 7:00
Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
Assim como a exploração do petróleo no Brasil, a legislação para proteger o meio ambiente de possíveis tragédias evoluiu nos últimos anos - FOTO: Foto: Felipe Ribeiro/JC Imagem
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No ano em que o Brasil completa 80 anos da descoberta do primeiro poço de petróleo, no bairro de Lobato, em Salvador, o “ouro negro” volta a ficar em evidência entre a população nordestina, só que em forma de tragédia. Segundo o governo federal, no entanto, o petróleo cru que já atinge uma faixa de 2,5 mil quilômetros de praias da região não é produzido no País e, de uma forma ainda desconhecida, teria sido despejado em alto-mar, chegando agora até a costa. As mais de mil toneladas do material já recolhidas por voluntários, homens do Exército e funcionários do poder público local e estadual colocam no cerne da discussão a capacidade do poder Executivo no que diz respeito à aplicabilidade da legislação ambiental frente a desastres como o que ocorre agora.

Em franco desenvolvimento no País desde a década de 1990, e de forma ainda mais acelerada pelo menos nos últimos dez anos, a exploração de petróleo cresceu 61% no Brasil, saltando de 1,8 milhão de barris por dia (MMbbl/d) em 2008 para 2,9 milhões MMbbl/d até o mês de setembro de 2019. Não por acaso, a Petrobras naquele ano intensificava sua atividades no que hoje conhecemos como pré-sal, responsável por 63,4% da totalidade produzida no País, com 1,928 MMbbl/d de petróleo sendo extraídos de 110 poços.

“Desde 1983, a partir da Política Nacional de Meio Ambiente, que foi regulamentada naquele ano, o Brasil foi se preparando, e isso veio ocorrendo ao mesmo tempo que aumentava a exploração de petróleo. A prospecção (de novas áreas para exploração), algo que sempre foi muito importante para a Petrobras, trouxe reconhecimento e deu renome à empresa. A legislação brasileira, com a experiência de diferentes momentos e ocorrências, tanto em oleodutos quanto em navios, plataformas e grandes terminais acompanhou isso. Nós nos preparamos e chegamos aos anos 2000 com a base de como proceder em alguma falha”, diz a doutora e professora sênior da Universidade de São Paulo (USP) Yara Schaeffer Novelli – primeira perita numa ação por dano ambiental movida no Brasil – em referência à lei 9.966/2000 sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de óleo.

Segundo ela, o grande passo dado após os anos 2000 foi justamente a criação do Plano Nacional de Contingência (PNC) em 2013, que, entre outras questões, mapeia áreas litorâneas sensíveis ao derramamento de petróleo e seus derivados e cria uma estrutura organizacional envolvendo desde o Executivo nacional ao poder público municipal, entidades de proteção ao meio ambiente e universidades para atuação em momentos críticos, inclusive no que diz respeito ao repasse de recursos por parte da União.

“Houve todo um preparo, então o que causa espanto é que estávamos vendo no decorrer dos anos cada vez menos desastres. Falhas humanas, eventos inesperados e fissuras no fundo do mar por onde começaram a vazar óleo, sim; mas isso está dentro do risco de uma atividade francamente de risco, como é o caso da exploração de petróleo e o trânsito de navios. Porém, estávamos tendo um controle relativamente bom, numa preparação pró-ativa de tudo isso que vinha acontecendo. O que nos pegou de surpresa agora foi que, de repente, o pessoal esqueceu, os órgãos tomadores de decisão esqueceram que nós tínhamos toda essa memória técnica”, reclama a doutora. Embora, segundo o comandante de operações navais da Marinha, Leonardo Pontel, “o grupo de avaliação e acompanhamento já estivesse trabalhando desde o dia 2 de setembro”, inclusive com toda a estrutura do Plano Nacional de Contingência, o PNC só foi formalizado pelo ministro do Meio Ambiente 41 dias depois de terem surgido as primeiras manchas de óleo no Nordeste.

A falta de coesão entre os órgãos públicos para uma ação mais enérgica no combate ao avanço do petróleo cru nas praias, além de manchar o próprio litoral, pode deixar também uma mancha no mercado brasileiro, às vésperas do megaleilão do pré-sal, que deve movimentar com a cessão onerosa pelo menos R$ 106 bilhões em arrecadação. “Talvez a crítica que a gente possa fazer ao governo brasileiro é que ele demorou muito a reagir, e o Brasil nesses último meses teve dois grandes acidentes ambientais. Queimadas na Amazônia e esse vazamento de óleo. Todos os dois trazem meio que embutidos um discurso ideológico, e isso é ruim porque a ideologia não resolve o problema. Acidentes ambientais ninguém deseja que aconteçam, mas eles acontecem e nós devemos estar preparados para isso”, afirma o diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura, Adriano Pires.

Origem do vazamento

Se por um lado há críticas à forma de atuação do poder público na contenção do vazamento, por outro lado também pesa a falta de explicações sobre as investigações. Estudos técnicos da Petrobras indicam que o petróleo tem origem venezuelana, e o governo sustenta a tese de que o material teria chegado à costa após vazamento de um navio fantasma, provavelmente numa operação de transbordo do material numa operação chamada de ship to ship (de navio para navio). No Recife, o comandante de operações navais da Marinha apenas garantiu que a investigação do vazamento está ocorrendo e uma consultoria especializada em vazamentos de petróleo, a inglesa ITOPF, está atuando em conjunto com o Ibama.

“Essa história de navio fantasma todo mundo sabe que existe, mas a única pessoa que tem dados para falar é a Marinha. Se a gente tivesse uma frota da Marinha maior, com mais navios-patrulha e mais efetivo, evidentemente teria-se uma vigilância maior, muito possivelmente conseguindo detectar navios que não estão com seu equipamento ligado (fantasma). O problema é que hoje a frota da Marinha é reduzida, porque há muitos anos não se investe na renovação”, pontua o vice-presidente do Sinaval, Sérgio Bacci.

Na ilegalidade ou na legalidade, a realização do ship to ship tem crescido. No primeiro caso, especialistas admitem que a movimentação se justifica pelas sanções econômicas impostas à Venezuela e ao regime de Nicolás Maduro. Lá, a produção petrolífera corresponde à 96% das receitas. No segundo, a busca das empresas por facilidade de logística e menor custo transferiu via ship to ship 77 milhões de barris de óleo em 2018 e, este ano, até setembro, já foram 69 milhões de barris segundo levantamento do jornal Estado de São Paulo.

“Isso acontece com certa naturalidade. Você extrai do poço o petróleo, vai para um navio grande e aí faz o transbordo para navios menores e leva o petróleo até a costa. Agora existem padrões de segurança para evitar que ocorra o vazamento para a água. Evidentemente, acidentes acontecem, mas rapidamente se consegue estancar vazamentos. Nesse caso do Nordeste, tem que ver em que nível foi essa operação, porque já se tem muito óleo. É muito esquisito”, acrescenta Bacci.

Responsável pela liberação das empresas para realização do ship to ship, o Ibama não respondeu aos questionamentos do Jornal do Commercio até o fechamento desta edição. O mesmo ocorreu com o Ministério do Meio Ambiente e a Marinha, ao serem questionados, respectivamente, sobre as ações de contenção e investigação do derramamento de óleo e fiscalização de navios fantasmas na costa brasileira.

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