Entrevista

'A sociedade tem que estar solidária para resolver a crise que estamos vivendo', diz Sérgio Buarque

Economista, professor da UPE e articulista do JC, Sérgio defende os avanços da social-democracia

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Publicado em 07/11/2019 às 7:33
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Economista, professor da UPE e articulista do JC, Sérgio defende os avanços da social-democracia - FOTO: Foto: Leo Motta/JC Imagem
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Professor titular da Faculdade de Ciências da Administração de Pernambuco (UPE) e articulista do Jornal do Commercio, o economista Sérgio Buarque defende os avanços da social-democracia, que na sua opinião nunca houve no Brasil. Ele vê no Plano Mais Brasil, do liberal Paulo Guedes (Ministro da Economia), a chance de o País dar esse passo. “Precisamos reestruturar o Estado para emplacar a social-democracia”, disse em entrevista ao jornalista Leonardo Spinelli.

Confira a entrevista

Jornal do Commercio - O governo federal apresentou na terça-feira (5) o programa Mais Brasil. O projeto tem objetivo de conter a expansão das despesas obrigatórias, em especial com a folha de pagamento, além de buscar dar flexibilidade à gestão orçamentária das três esferas de Poder. Como podemos avaliar a iniciativa?

Sérgio Buarque - A proposta é muito ousada, com foco na reestruturação do Estado brasileiro. Pode ter, eventualmente, falhas, mas faz sentido, tanto nas questões emergenciais quanto nas estruturais. Traz ao debate a descentralização de recursos para Estados e municípios, combinados com uma exigência de maior rigor na gestão fiscal e, principalmente, na extinção de municípios sem viabilidade fiscal. Acho que o ministro Paulo Guedes (Economia) foi até generoso ao criar o critério de municípios de 5 mil habitantes com até 10% de receita própria. Deveria ter sido mais profundo, mas é difícil aprovar uma proposta como essa. Cerca de 769 municípios, que dá mais da metade dos 1.252 com 5 mil habitantes, estão enquadrados nessa condição de não terem receita própria acima dos 10%. Uma prefeitura estabelecida com prefeito, vice e 9 varredores é uma aberração para uma cidade com 5 mil habitantes. É uma despesa que está sendo feita como uma simples de distribuição do FPM (Fundo de Participação dos Municípios).

JC – O senhor não acha que colocar a discussão dos municípios pequenos seria uma daquelas gorduras já previstas pelo governo em que o Congresso termina não aprovando, principalmente porque 2020 é ano eleitoral?

Buarque - Independente de ter eleição no próximo ano, você tem muitos interesses nos municípios, até porque reunificar municípios é difícil. Não sei se é bode na sala para negociar, mas traz a questão dos distributivismos que comprometem a gestão dos recursos públicos. Em vez de ir para educação e saúde, esses recursos são desperdiçados com estrutura de Câmara e prefeitura.

JC – Qual seria a proposta mais importante do pacote?

Buarque – Tem algumas questões que são emergenciais, para aliviar a rigidez da gestão pública, num momento de extrema falência do Estado. São destravamentos, flexibilização do orçamento. São temas importantes para o governo ter capacidade de gestão, de gerir a crise. Mexe com os servidores públicos. Existe uma desigualdade, inclusive dentro do serviço público. Algumas áreas com muito privilégio, e outras maltratadas, mas esse é um tema que vai mexer com corporações. Acho que estamos numa situação em que o Estado faliu, é ineficiente, pois 35% da carga é apropriada para salários, e chega a ser mais se jogarmos o déficit primário na conta, chegando a 40%. Tudo isso para prestar um serviço da pior qualidade. Melhorar, otimizar os recursos é fundamental. Paulo Guedes afirma que nós precisamos fazer uma reforma liberal para acabar com a social-democracia. Mas no Brasil nunca houve social-democracia, a gente teve distribuição de renda mal feita. Nós precisamos reestruturar o Estado para emplacar a social-democracia, com ativos sociais transformadores. Hoje, nós temos um Estado que arrecada no padrão da social-democracia europeia, mas gasta mal, igual a um país da América Latina ou África.

JC – A proposta também flexibiliza as vinculações de recursos para saúde e educação. Não há o risco de precarização dos serviços?

Buarque - A proposta não acaba com a vinculação de saúde e educação. Acho até que Guedes gostaria de ter acabado com isso, mas o que ele fez foi juntar os dois percentuais num bloco só, para o gestor ter flexibilidade de usar os recursos de educação e saúde de acordo com a necessidade específica de município e Estado. Muitas vezes você tem uma rubrica para gastar na reestruturação de uma escola que não precisa, mas falta dinheiro para comprar remédio na área de saúde. Não é uma medida drástica, mas pode facilitar a decisão do gestor na distribuição desses dois itens. O que ele fez, portanto, foi propor a junção dos dois. Hoje sobra, no máximo, 10% (do orçamento) para ter capacidade de gerar investimento, é pouco. A ideia é de flexibilização, uma tese fundamental da gestão orçamentária. A rigidez tornou inviável a gestão pública do Brasil. O que eu acho errado na proposta é juntar no percentual dos recursos com saúde e educação os gastos com inativos. Dessa forma, se mistura uma rubrica setorial com a rubrica previdenciária. E, aí, você reduz muito o que, de fato, será usado em saúde e educação. Acho que é errado e não vai passar.

JC – A proposta do governo permite gatilhos para suspender reajustes, concursos, criação de despesas obrigatórias, além de abrir possibilidade de serem reduzidos até 25% da jornada do servidor. O contingenciamento, em caso de crise fiscal, poderá atingir até mesmo o orçamento do Judiciário e do Legislativo. O senhor acha que isso passa?

Buarque – O setor público tem uma grande disparidade de salários, e onde isso acontece com mais força é justamente no Judiciário e Legislativo. O que eles têm de benefício e privilégios é insuportável num país de renda média como o Brasil. Não sei se Guedes vai conseguir mexer nisso, estamos num momento em que a sociedade tem que estar solidária para resolver a crise que estamos vivendo. O pobre não pode mais suportar isso, quem tem que suportar agora é a parcela relevante do setor público. O salário do professor tem que ser o melhor; do médico, precisam melhorar. Mas, no Judiciário e Legislativo, é extravagância. O problema é que mexer nisso é difícil, até pela autonomia dos Poderes.

JC – O senhor acha que houve cautela do governo em propor a descentralização de receitas focada apenas na possibilidade de repartir as rendas de petróleo da União com Estados e municípios?

Buarque – O governo poderia ter sido mais ousado, mas a timidez acontece porque é uma proposta difícil de ser aprovada. É preciso redistribuir e rever as cobranças da Lei Kandir. É uma espécie de ajuste de contas. (De acordo com o governo, o repasse nos próximos anos de recursos do pré-sal aos entes da federação deverá encerrar a disputa judicial sobre a Lei Kandir entre Estados e União. Estados cobram do governo compensação por perdas nos últimos anos com essa legislação que desonerou as exportações. A proposta inicial do governo contemplava a liberação de R$ 500 bilhões, mas o valor acabou caindo para R$ 400 bilhões após a “desidratação” da reforma da Previdência no Senado Federal).

JC – A PEC dos fundos prevê um prazo de dois anos para extinguir os fundos infraconstitucionais e ainda propõe quórum qualificado (3/5 dos votos) no Congresso para aprovação de novos fundos. É uma medida necessária?

Buarque – O Brasil foi criando fundos para qualquer coisa, hoje são mais de 280. Há fundos que têm recursos parados, mas, claro, há alguns que precisam ser preservados. Por enquanto estão respeitando os fundos constitucionais, como o FNE, que é importante para Nordeste. Também estão dizendo que Guedes quer acabar com o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), mas, pelo o que sei, a ideia é reduzir o percentual de repasses do FAT de 40% para 14% ao BNDES.

JC – Há críticas com relação à estratégia do governo em tratar do assunto em várias PECs. O senhor concorda com essa visão?

Buarque – O importante é o governo estar levando a discussão das questões estruturais. É uma sinalização boa para os agentes econômicos, mas não sei se é positiva a forma como foi feita. O governo está interessado em fazer uma mudança profunda, e a história do Brasil sempre foi de ir mudando nas miudezas. O projeto é completo, traz uma proposta de reforma forte. Boa sinalização.

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