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Quando a literatura explica o fascínio pelo Carnaval

Confira textos de Clarice Lispector, Drummond e Manuel Bandeira, entre outros, que falam da Folia de Momo

Do JC Online
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Publicado em 15/02/2015 às 5:53
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Confira textos de Clarice Lispector, Drummond e Manuel Bandeira, entre outros, que falam da Folia de Momo - FOTO: NE10
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Dois clichês foram e são sempre utilizados para definir o Brasil: País do futebol e do Carnaval. Fala-se sempre que o esporte não é muito abordado na nossa literatura. Com o Carnaval, no entanto, o caso parece ser diferente: não faltam exemplos de contos, romances e poemas que falam da festa (leia alguns abaixo).

Affonso Romano Sant’Anna comenta, em vídeo de apresentação do livro de poesias Carnaval, de Manuel Bandeira, que a festa é um tema poético desde os fins do século 19. Ele vê na obra uma transição para o modernismo através do tema da carnavalização, como definido pelo filósofo russo Bakhtin, que fala dos momentos na sociedade em que “o pobre se veste de rico, o rico se veste de pobre, a periferia vem pro centro”. Não por acaso, o Carnaval e a vanguarda são anarquicamente iconoclastas e não se restringem às amarras oficiais.

Além dos citados na arte, há inúmeros casos, ainda hoje. Raimundo Carrero, em Tangolomango, coloca a história de Tia Guilhermina dentro da Folia de Momo; por outro lado, Ronaldo Correia de Brito, em A rainha sem coroa, do livro de contos Retratos imorais, fala de Madalena, rainha de maracatu que quer ser coroada por um desafeto, Dona Santa. Com uma visão carioca do tema, Sergio Sant’Anna abre seu mais recente volume de narrativas curtas, o Homem-mulher, apresentando Adamastor, homem travestido de moça para a folia.

O historiador Leonardo Dantas, autor da rara Antologia do Carnaval do Recife, fora de catálogo, comenta que festa é presente não só na literatura. Ele lembra que José Ramos Tinhorão, seu amigo, escreveu por sua insistência sobre o Carnaval brasileiro e o pernambucano nos romances nacionais. Apesar do pioneirismo de O passionário, de 1897, o seu texto preferido é o do livro Seu Candinho da farmácia, de Mário Sette, que reproduz a vibração do frevo no povo. “Ninguém escreve como ele sobre o assunto, ele humilha”, opina o pesquisador.

Confira alguns contos, romances e poemas sobre o Carnaval:


Restos de Carnaval
(Clarice Lispector)
 
E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. (...)
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara.
 
 
 
Não sei dançar
(Manuel Bandeira)
 
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. (...)
 
Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que eu sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.
 
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda.
 
Mistura muito excelente de chás…
Esta foi açafata…
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal:
Tão Brasil!
(...)
 
Ninguém se lembra de política…
Nem dos oito mil quilômetros de costa…
O algodão de Seridó é o melhor do mundo?… Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
 
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!
 
 
 
Carnaval Antigo
(Antonio Maria)
 
No Recife, o Carnaval começava no Natal. Ou melhor, não havia Natal no Recife. A 24 de dezembro, os blocos saíam à rua, com suas orquestras de trinta a quarenta metais, seus coros de vozes sofridas, a tocar e a cantar as “jornadas” mais líricas. (...)
Não se pode fazer idéia do que era o povo do Recife solto nas ruas do Recife, após a declaração irreversível do carnaval. Faziam parte da corte imperial mulheres morenas, que suavam, em bolinhas, na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças — o frevo. Ah, de nada serviam suas heranças de submissão, porque o despontar do carnaval era um grito de alforria. (...).
Eu era mais que um guerreiro. Era o vento. Cada homem e cada mulher eram uma parte daquele furacão libertário.
 
 
 
Soneto principalmente do carnaval
(Carlos Pena Filho)
 
Do fogo à cinza fui por três escadas
e chegando aos limites dos desertos,
entre furnas e leões marquei incertos
encontros com mulheres mascaradas.
 
De pirata da Espanha disfarçado
adormeci panteras e medusas.
Mas, quando me lembrei das andaluzas,
pulei do azul, sentei-me no encarnado.
 
Respirei as ciganas inconstantes
e as profundas ausências do passado,
porém, retido fui pelos infantes
 
que me trouxeram vidros do estrangeiro
e me deixaram só, dependurado
nos cabelos azuis de fevereiro.
 
 
 
Um homem e seu carnaval
(Carlos Drummond de Andrade)
 
Deus me abandonou
no meio da orgia
entre uma baiana e uma egípcia.
Estou perdido.
Sem olhos, sem boca
sem dimensões.
As fitas, as cores, os barulhos
passam por mim de raspão.
Pobre poesia.
 
O pandeiro bate
é dentro do peito
mas ninguém percebe.
Estou lívido, gago.
Eternas namoradas
riem para mim
demonstrando os corpos,
os dentes.
Impossível perdoá-las,
sequer esquecê-las. (...)
 
 
 
Segundo dia de Carnaval
(Alberto da Cunha Melo)
 
(...)
Passam blocos carnavalescos
e mulheres cheias de tochas
incendeiam homens molhadosde álcool, ensopados de azul.
 
Quando alguém pede para o morto
um só minuto de silêncio,
o porta-estandarte responde
que ele ‘tem silêncio demais’”
 

Seu Candinho da Farmácia
(Mário Sette)
 
De súbito um toque vibrante de clarim. As moças paralisam as costuras; apuram os ouvidos; entreolham-se num gesto incontido e nervoso.
– Deve ser o Vassoura! – presume Luizinha, já de pé, endireitando os cabelos.
– É ele mesmo. Vai sair hoje.
(...) Casas se esvaziam. Saem todos à vontade. Homens limpando as bocas na manga do paletó, interrompendo o jantar; uma crioulinha dando beliscões de frade numa meninota para espertá-la no andar; uma mulher gorda com o filho pequeno no braço, guardando ainda o peito que o amamentava; raparigas de vida alegre, de caras muito pintadas, flor nos cabelos, gingados de ancas; cozinheiras esfregando as mãos engorduradas nas saias de chita; rapazes em mangas de camisa; senhorinhas em alvoroço endireitando as ligas num displicente devassar das coxas; meninos em algazarra, rodando reco-recos; mulheres tirando chinelas para mais desembaraço dos movimentos; balofas negras sacudindo os flácidos seios; amas escanchando nos quartos os filhos alheios, metendo-lhes nas bocas chupetas duvidosas; matronas já avós; sexagenários resmungando contra a pressa dos moços; boleiras carregando os tabuleiros, geladeiras abandonando as barracas, quitandas trancando as portas, lavadeiras de trouxas nas cabeças, cães domésticos e vadios ajuntando ao tumulto humano seu ladrido espantado ou festivo...
Quem não soubesse do ensaio do Vassourinhas, imaginaria um pânico, um êxodo, uma nova revolução.
E era apenas o frevo.

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